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O RINOCERONTE DE CLARICE
onze contos interativos
__________________________________________________
Série: Literatura Virtual em 3 Dimensões-Gênero: Ficção-Angústia
SILAS CORRÊA LEITE
1998

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Para minha irmã Neusa que só vi uma vez quando muito criança
e nunca mais esqueci
....................................................................................................
(A pior Saudade é a do que não se conhece bem) O Autor

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COMENTÁRIOS DO AUTOR
-Tive idéia desse livro, ao lembrar meus tempos de
criança ainda no Curso Primário do Grupo Escolar
Tomé Teixeira, em Itararé, quando a Mestra (à
bença, Dona Jocelina!) inventava uma graciosa
brincadeira dizendo: "Vamos bolar histórias. Eu
começo e vocês terminam." E dava de contar
causos e acontecências, de Lobato, dos Irmãos
Grimm, de Itararé (ah os proseadores rueiros de
minha aldeia!), ou invenções lá dela mesma. Com
eu era um gurí atinado de curioso, sapeca e, já
carregado de sonhos para plantar nas sofrências da
vida, eu pegava nas asas das coisas que ela
inventava de pincelar e ia longe. Ela mesma, depois
que lia as minhas, ponhamos, "continuações", dizia
(feliz com o resultado da empreita pedagógica
vivenciada) "-Esse piá vai longe". Pois aqui estou
eu, passando a "asa da criação" para vocês. Ir
longe pode ser também dentro da gente? Cabeça,
coração, alma?. Escrever é entrar no céu do
Sentir... Mas também pode - além de nos permitir
"inventar o inexistente" - invadir o destino das
águias, dos rios, fundando horizontes em bruscos
córregos íntimos. Abrindo janelas em paredes mal-
caiadas. Tirando arreios de nossas esperanças
tristes. Como criar é "praticar a sensibilidade do
sonho", que saibamos pintar de luz esse clube de
aventuras chamado "asa de EXISTIR". Afinal, não
há sensações no esquecimento, e, como diz a
canção, a semente tem que morrer para germinar e
virar pão. Na minha ficção-angústia, traduzo o
desespero de poeta em polimentos de matizes &
iluminuras. Talvez só os imbecis sejam felizes.
Deixo, nesses interativos plugs, que o leitor deposite
o favo de sua sensibilidade, faça a sua parte.
Talvez, então, haja um final feliz, um barco, um bip,
um chips; um mero pássaro-flor na sensibilidade
revisitada com tintas de luz e algum mimo de ternura
virtual
(O AUTOR) Itararé-Sul do Estado de São Paulo
Carranca de Outubro de 1998.(Chuva e Cerveja)

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O RINOCERONTE DE CLARICE
(Literatura virtual - contos interativos)
QUASE PREFÁCIO
Eu começo e o leitor termina. Eu deixo opções para o leitor escolher um final
que lhe seja gracioso, feliz ou trágico. Mas o leitor também pode variar mão e
abrir seu leque, criar seu próprio diretório de criatividade e acender as
lanternas do seu "sentir", de seu imaginar; de seu próprio punho. Pode também,
numa primeira avaliação, ler um final. Depois ir formando opinião a respeito.
Quando quiser, rever o conto mas com a opção do acabamento diferente da
versão anterior. Depois dos três finais ora arrolados, ainda terá seu espaço no
livro, numa página, para escrever seu próprio final. Pode fazê-lo à caneta,
talvez datilografar uma página e colar no espaço; ou abrir uma janela no seu
computador. Se quiser pode me enviar sua "asa de continuação". Talvez, numa
edição futura, contemplemos os leitores que escreverem um final próprio,
peculiar, curioso, gostoso (sob qualquer enfoque técnico-narrativo ou de
desfecho) colocando-o(s) no livro. Afinal, nessa interação "Escritor-Leitor-
(Sentidor)" pode ser que nos encontremos no texto final, definitivo. Esse é o
lado interativo que o livro também como projeto-experiência propõe.
Deixemos o leitor compor seu próprio desfecho. Assim, fará sentido essa idéia
que também é um sonho. Passo a "asa do sonho" para o leitor. Obrigado pela
parceria. Viver é criar. Mãos ao lápis. Ou, ao micro. Escrever é dar
documento à resistência de sensibilidade que nos cabe nesse Planeta Água,
onde só os lutadores não passam em brancas nuvens, apesar de muito ouro e
poucas pétalas.
Silas Corrêa Leite – de Itararé-SP – Carranca de Outubro,1998

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"Ele era um vendedor profissional de contos incompletos, para que escritores amadores os
continuassem. Ele criava muitos personagens, elaborava uma pequena trama, e depois vendia
essas histórias de porta em porta. Carregava os contos numa maletinha de couro marrom,
todos eles juntinhos, espremidos um no outro, como se amparassem a si mesmos em busca de
quem lhes desse um fim. Tão espremidos que muitas vezes alguns personagens mudavam de
um conto para outro. E o vendedor considerava-se bem pago, mesmo quando não era bem
recebido. Uma porta em sua cara, uma cara feia do lado de dentro, um sorriso inocente de
criança; tudo para ele era belo, e ainda que não vendesse conto algum, voltava sempre
satisfeito. Com ideias novas para novos contos. Vivia de literatura interativa, virtualmente
alimentado por pequenas e grandes emoções(...)"
Edson Marques, in, Manual da Separação
Edição do Autor - 1998

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O quanto seria pobre um rosto que não fosse iluminado
de dentro, pelos sonhos.
(Jon Bang Carisen - Documentarista Dinamarquês)

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"...talvez como num futuro já vivido, seres aparecem entre a
mente e a mineração, entre, a memória estávica e a virtual,
entre o passado e o futuro, como querendo resgatar algo
perdido; como voltar, para novamente poder ir em frente(...).
E como não podemos entender o tempo da pedra, então
brincamos com ele e fazemos dele um veículo de formas,
imagens e suporte para que objetos do mundo contemporâneo
possam ser agregados e sirvam de ligação, reflexão e poesia".
............................................................................
(Seres - Clóvis Moreno)

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CARMEM
"...teu pai voltou para ouvir/Tudo o que tinhas
contra ele/Não podia acreditar(...)/Assim teu
grito de libertação/Materializou-se em
teu silêncio sacrificial"
(Ted Hughes/O Lance -"Birthday Letters")
Carmem era uma aposentada professora quase viúva e
solitária, descendente de antigos imigrantes severos de Toledo, Espanha.
Todas as irmãs, ruivas como ela, no entanto mais velhas, tinham morrido. O
marido sofrera um grave acidente numa corrida de cavalos e estava na UTI da
Santa Casa de Misericórdia de Itararé, só se restando ali, Carmem, com sua
parca vidinha sem horizontes, pois filhos não tinha, os sobrinhos foram embora
de Itararé em busca de melhores condições de trabalho e estudos, só tendo suas
úmidas paredes sósias manchadas de abandonos, seus muros da chácara
periférica de flores mal-cuidadas, sua parceria sagrada e silente com
alvoroçados pardais silvestres, uma mula castrada (com nome masculino),
sarnentos gatos magros e algumas árvores que lhe davam frutos, sombras e, às
vezes, uma vontade enorme de transformar aquele antigo balanço de cordas do
ramo mais alto da amoreira sem bichos, em suicídio final para sua tragédia
pessoal de existir abandonada e triste. Quantas vezes se pegara a cismar
entrevada em mil pontos de interrogações:
"-Deveria ter amado o filho do caixeiro-viajante das Lojas
Riachuelo que não era príncipe encantado, mas queria ser marinheiro, virar
mundo e ser feliz? Deveria ter estudado, ao invés da Matemática, isto sim,
Educação Artística, Arqueologia ou Fauna Marinha? Deveria ter perdoado o
severo pai espanhol com o qual morrera de-mal, pois lhe dava boas surras de
cinta por que era turrona e de pá virada? Deveria ter ouvido a mãe Esmeralda
e entrado para o Convento Nossa Senhora de Fátima, pagar promessas dos
antigos imigrantes da família; tornar-se enclausurada Irmã de Jesus? Na
verdade, doía-lhe a frustração emperrada no cadeado do medo. Tinha sido
devedora, tinha mentido, tinha havido mal falada, tinha sido por muito tempo o
quê não era. Era uma mulher de extremos. E, afinal, o que era agora ali na
provinciana aldeia paulista de Itararé, sem eira nem beira? Uma parca pensão
pública que a cada ano mirrava, por causa da proposital falência do estado
norteado por neo-liberais de araque; o arremedo de marido na frágil linha

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tênue entre o vegetar e o morrer completamente, os amigos de infância e de
escola mortos, todos, irremediavelmente mortos. Mal reconhecia um ente
qualquer na rua. Era como se uma estranha em Itararé. Pior: era uma estranha
para si mesma. Onde já se viu aquilo? Quando, ocasionalmente se olhava no
espelho carcomido do guarda-roupa de imbuia-cheirosa, tinha medo, muito
medo. Quem era aquela ali que se lhe vinha então? Era esquisita até. Onde
estavam os brilhantes olhos de esmeraldas polidas a procurarem vãos de
cercas, trigais de sonhos, estradas de tijolos amarelos? A pele, franzida de
velha. Os cabelos cor de fogo, rareando. A testa esticada, feia, com rugas. A
boca oval murchando e as mãos, meu Deus, as mãos! Mãos de morta,
reconhecia ensimesmada, querendo fugir, não acreditando. E punha identidade
na sua tristeza aprendida pela sina dos rotineiros dias em vãos. Casara com um
primo em segundo grau por pressão do pai, já que estava grávida de um outro
entojado; um porqueira de ferroviário tinhoso, bom de papo mas casado e com
fieira de filhos topetudos. Tudo tinha sido um ocasional e simpático arranjo.
Mas o primo molóide era um beberrão, e a criança também morrera antes de
formar-se toda na placenta com problemas, pois que não pegava cria. Nem
para isso prestava. Os seus alunos pirralhos da escola municipal, reclamaram
que ela estava sem-seca, casca-grossa, mandona e algo bisonhamente estúpida.
Ficou encostada, de favor, na biblioteca-livraria da escola, até ser aposentada
com laudo provisório de meio esquizofrênica. Até a matemática lhe
abandonara. Agora se restava ali, aleijada de ser. Deveria ter ido para
Curitiba tentar a carreira solo de cantora lírica de ópera? Tinha voz de cristal.
Deveria ter fugido com o Engolidor de Fogos do nômade Circo Alemão? O
tipo era fogoso e especial. Deveria ter tomado cerveja preta até morrer de
porre, pois que morrer bêbado é uma morte que mina a dor do crime de
existir? Tinha espasmos, siricoticos. Devaneios ou onirismos? Tomava
remédios pesados. Depressões, acirramentos, vazios existenciais que o
Lexotan não ajudava, além de traumas, renúncias, frustrações. Até quando ia na
agência da Caixa receber o minguado salário mensal, era tratada como uma
nhenga qualquer, uma candonga. Mas, isso é o que era. Um nada. Cacos de
lixo. Cadê a vaidade, a boca pintada de batom carmim, os cachos dos cabelos
da cor de peroba-braba? Perguntas ôcas. O São Judas-Tadeu no pedestal perto
da janela não valia nada, sequer um tostão de prosa ou arremate de reza
decorada que mais fosse de toleima. Deus era um silêncio sem documento.
Poderia se apinchar no "tembé" fatal (de suicidas) da gruta benta de
Andorinhas, do rio Itararé, que dividia São Paulo do vizinho estado do Paraná.

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Poderia vender tudo o que tinha e ir conhecer Cuba, pois que acreditava ainda
no ético-humanitário sonho socialista. Poderia sumir no mapa, vagamundear;
ninguém ia reparar mesmo. O pilão de madeira nobre pegando cupim por falta
de uso. A mula pastando erva daninha A velha máquina de costura,
ultrapassada. O roufenho radinho de pilha parecia quase um ente, um filho. Um
filhote? Conversava com ele, feito louca, débil; ouvia suas músicas sertanejas,
palavras ao léu e até mesmo chiados depois que a Rádio Clube de Itararé saía
do ar, quando ficava o éter como risinhos e chistes rápidos a caçoarem de sua
desgraça de ridícula e caínha. Chiados? Quando tomava remédios para dormir
feito uma mula tonga, não caçava direito o tino. Mas quando o remédio não
pegava prumo mais (ou dava o chamado "rebite" no psico-somático) parecia
que o aparelho ligado com a estação fora do ar era um ente e, o chiado
chispando perto começou a dizer coisas. Estaria impressionada? Estaria
ficando louca de-vereda? Será o impossível? Dizia a voz que ela deveria ter
sido bailarina em Amsterdã, ou casado com o Violinista judeu que viera com
uma orquestra de Sorocaba dar concerto da Nona Sinfonia de Bethovem na
lapa benta de Itararé. Era briguenta, teimosa, mula empacada às vezes, mas
tinha medo de ousar, de ir para o exterior, de aprender a nadar borboleta, de
pintar costumes chineses em seda, de empinar papagaios. Na infância era
refreada pelo pai severo e católico, conservador até as tripas. Na adolescência
era vigiada pelas sarangas irmãs mais velhas, beatas e mandonas como o
cusarruim. A mãe era uma santa, mas totalmente submissa ao velho patriarca
espanhol. Era revoltada com isso. Tem cabimento? Parecia um curtume.
Casara e se achara rendida em casa, pois o marido era meio tantã e abilolado
também. Não a amava, sentia. Mas, afinal, quem a amava? Tinha sido usada,
dirigida, feito um inventariante de cenários que lhe deixara o vazio camarim da
dor, do abandono. Nunca vira um cais, um arrozal pronto para a seara ou ceifa,
um concorrido baile de gala, de Grito de Carnaval, uma festa de São João com
bandeirinhas, uma alvissareira quermesse ou mesmo um simples jogo de
futebol de piás berebentos e peidorreiros na descalça rua 24 de Outubro, que
era do lado de sua casa. Ficara ilhada na sua resignação como a se sublimar
por ser ruim, bocuda e desgraçada. Sabia que a velha garrucha do marido de
arranjo estava no criado-mudo. Mas, cadê coragem-calço para acabar com
aquilo tudo? Sabia que, ao abrir as portas de casa e dar para a ruela de terra
branca e calipiás, seria temida como uma bruxa de mau agouro. Sim, era esse o
destino algoz que o livro dos dias lhe legara: iria feder até ser achada morta
por causa de denúncia de vizinhos estrupícios. Isso lá era vida? Benza-Deus!

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Tinha que fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais. Ou já seria tarde
demais? Talvez devesse vedar as portas da casa, enfiar a cabeça de miolo
mole no forninho branco e abrir todas as bocas de gás do fogão azul riscadinho
de pelicanozinhos vermelhos. Tinha mania de limpeza. Mas era seu íntimo
estúpido um paiol de trastes velhos. Ódios desaprendidos, frustrações-
coivaras, resquícios de vinganças cultivadas. Descobrira que era sensível mas
a insensibilidade geral, coletiva, tinha vencido. Era só de si mesma. Sem
herdeiros, sem amigos, sem ter onde cair viva. Que Deus tivesse piedade de
sua inutilidade. Isso tudo, fora a lição que levara da existência que legara: um
corote de mediocridade. Tinha que reagir antes que perdesse as forças. Afinal,
estava velha e morta por dentro, mas ainda não tinha meio século de vida.
Lembrou Homero que dizia que viver sempre em tristeza era da espécie
humana. Tinha que assumir aquilo tudo? Sabia que existir não era só a mente.
Deveria ser alguma coisa além. Mas, o quê fazer? O rádio ligado e, com a
emissora fora do ar, os chiados já decodificados na convivência lhe deram a
intenção contida em medo: "Reaja - Fuja, Fuja, Fuja! (Sim, não queria aquele
azedume de melancolia mórbida, quase gótica.)
Mas, insegura, logo em seguida ela se inquiria: Como?
Quando? Para onde? Sua chácara, com nome inglês, era seu abismal. A rua,
com nome engraçado, até lhe dera um número mínimo como nota imprópria de
valor zero. Com preocupação insana procurou o seu Carlito Ely da Imobiliaria
Casanobre. Mas teve medo (tinha medo de gente!) e desconfiou das supostas
intenções dele. Reinou: não queria passar procuração de compromisso de
venda. Seria só uma intuição ou carência singular? Poderia perder tudo e
piorar as coisas. Pensou em vender o jipe velho do marido entubado no
hospital, mas o que lhe pagariam não valeria pouco mais do que uma passagem
de ônibus-leito para São Sebastião do Rio de Janeiro, além de uns lanches
rápidos em beiras de estradas. Precisava haver uma saída. Tinha que haver.
Sim, era isso, meu Deus!: escreveria para os jornais. Aquelas colunas
oferecendo e pedindo companhias, aias, amantes, mensagens. Era isso o que
mais queria: saber pessoas DIFERENTES. Sabê-las em pormenores no vício
da vida especial, exótica; trocar impressões de resistências em comum. Só a
muito custo enviou a carta, depois de meses escrita e selada ao lado do pote
marrom com lesmas; pagou a taxa do serviço, esperou. Em menos de um mês
começaram a chegar as cartas-respostas. No texto - que depois lhe enviaram
uma cópia - dizia: "Morena, 49 anos anos, professora, procura companhia.
Enviar carta com fotos e intenções. Adora viajar, gosta de bailes, músicas,

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poesias, aventuras". E assinou o favo de destino crucial: "Carmem Só".
N'algumas cartas que lhe vieram a seguir, as informações eram poucas, tímidas
ou inúteis. Triviais. Mas eram, todas, um belo contato com o poço seco da
vida. Um elo, um respiradouro de íntima oxigenação de seixos. Um retorno ao
tácito pedido de socorro. Um sujeito assinava Zé Sozinho e tinha sessenta
anos. Era viúvo e sobrevivia com filhos casados por perto. Na foto em preto e
branco, revelava-se calvo mas com belos olhos negros incisivos. Morava
sozinho por toleima. Carmem não respondeu. Não criou coragem para tanto.
Um outro, quarenta anos, mais parecia um aventureiro a querer pôr a mão em
seus bens, dar um golpe. Foi o que deduziu depauperada. Não era tão estúpida
assim. E o sujeito era abusado, insinuoso nas palavras. Conhecia bem o estilo.
Tinha sido usada na vau da mesma lábia. Separou as doze cartinhas e aquilo
passou a ser seu bastão de luta, seu quinhão, seu butim. Contatos ralos com a
vida. O que mais estranhou, foi uma cartinha diferente que recebeu, em papel-
arroz, cheirando a rosas, de fina caligrafia, onde uma senhora velha e solitária
(mas extremamente lúcida, culta e muito inteligente) lhe oferecia companhia
para o resto da vida toda, a troco de nada. Apenas fundar roseiral da parceria,
crochês de prosa, retalhos de sentimentos revisitados; de conversa fiada que
fosse, mais juras de solidariedade, sonhos, revisitanças íntimas. Era um
chamado dentro de seu coração partido. Então algo de si, em si, respondeu.
Logo situou-se: Graças a Deus não era a única tão sozinha no mundo, naquele
precário doloroso estágio de dezelo, feito um purgatório. Sim, podia ser a
saída. Uma amiga perdida como ela, solitária, abandonada. A mulher, de
codinome "Vida", não era feliz com seu destino tambémcruel, sentindo-se, por
vezes, odiada em sua missão de ter que ser Ser. Não havia de querer muito.
Talvez tomar uma cerveja gelada com ela, talvez até trocassem figurinhas
carimbadas de ressentimentos, erranças e lamúrias. Sim, era isso. Teria uma
outra história para contar. Escreveu. Foram mais de seis correspondências
enormes, por vários dias sem qualquer resposta. Até que veio o primeiro elo
da corrente. A mulher, que continuava a assinar "Vida", viajava muito, mas,
informara conhecer mares, desertos, planícies. Tivera muitos amantes.
Casados, solteiros, jovens, velhos. Todos tristes. Poderia olhar - pelas
palavras da amiga - na mesma direção como uma janela, um enfoque, um foco
direto de cinema mudo. A amiga - com a qual logo se simpatizou - não mandou
foto qualquer, mas dizia adorar música clássica. Falava várias línguas, tinha
irmãos maldosos e sempre vivera péssimamente em más companhias, correndo
riscos, sendo motivo de lágrimas até de carpideiras. Queria alguém de energia,

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mas, não impura como ela, reconheceu-se. Catou dinheiro, enviou a quantia
que achou ser bastante útil, pediu-implorou que a prezada amiga viesse logo.
Teria um doce lar em Itararé, um quarto pronto de paredemeia, um quintal
ajardinado enorme. E a lua de Itararé era linda, como um enorme queijo de
meia cura caseira, pendurado por Burle Marx no varal sacrossanto do ar.
Contariam causos. Plantariam roseirais, canteiros, milho-pipoca. Tirariam
água do poço enquanto reinventavam razões de subsistência. Talvez pagassem
para que arrumassem o jipe verde. Iriam ver os trigais amarelos de Itararé.
Iriam pelos bares boêmios, ouviriam as canções imprudentes dos jovens, iriam
rir das esperanças loucas dos poetas pós-modernos de Itararé. Quebrariam o
quartzo-róseo do íntimo transido. Leriam livros uma à outra. Romances de
amor e espadas. Uma começaria a história, outra terminaria. Escreveriam um
diário sobre esses tempos de revisitanças. A amiga "Vida" pediu um tempo.
Tinha mil problemas para resolver, passar situações dolorosas a limpo.
Carmem sonhava: colheriam dentes-de-leão selvagem na pradaria acima da
chácara. Vida informou, prudente: continuaria a escrever - que não a deixasse
só - pois que um dia viria sem mais nem menos. Carmem remoçou, cuidou-se.
Passou a existir-se. Podia ver as havências de novo através dos olhos da amiga
Vida. Podia também ver novamente o mundo ingrato com novos olhares puros
de criança; através dos olhos daquela senhora dona de muitas aventuras, uma
estrangeira pintada de viagens, mas infeliz também como ela. Afinal, um amigo
de confiança vale o montante em ouro dobrado. Carmem comprou sementes de
amor-perfeito, plantou girassóis, tílias, jacintos, begônias, violetas, açucenas-
brancas, lírios de São José; abriu janelas com cortinas bordadas a mão. Ouviu
barulhentas músicas jovens. Até as que falavam de amor e paz, amor e flor.
Passou a se aceitar assentada no rol trivial da existência mais comum, que aos
humanos finitos pertence. Passaram-se os anos e o monte de cartas de trocas se
avolumaram. Carmem achou que estava ficando louca, e se lembrou que tinha
lido num livro antigo que a loucura era eterna. Achou melhor continuar a
escrever mais e mais, sempre. Era solitária e abandonada, mas tinha que
continuar escrevendo, para dar seu testemunho de solidão. Passou a amar sua
solidão, só que queria tirar o olho da tristeza desaprendida do gume do
anonimato. Muitos filósofos, cientistas e poetas desde a idade das trevas, ou
mesmo antes dela, tinham escrito sobre a solidão e a morte. Quem a
compreendia? A solidão agora, para ela teria que ser um luxo, apesar de ser
travessia perigosa, dantescamente abismal. Passou a escrever as
correspondências com muito carinho e atenção, depois passando-as

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caprichosamente nos diários que se encardiam de manuseios e releituras
demoradas. As que recebia de resposta, colava como se um selo de promessa,
elo, farol. Lume de continuação. Montou dúzias de cadernos espirais com essa
troca feito um escambo de naufrágios. Será que a amiga tinha se arrependido
de escrever? Será que estava só dando desculpa e não viria mais? Não, não
era isso, sabia, a amiga de codinome Vida era fiel, verdadeira; estava com
problemas mesmo. Sentia isso. Um ano qualquer certamente viria de mala e
cuia. Seria uma benção essa vinda.
Carmem comprou apetrechos e começou a esculpir máscaras
primitivas em pedra-sabão, que perto da chácara tinha de monte. Sentia-se
ativa, digna; era amada por uma amiga espetacular que cedo ou tarde viria a ter
com ela. Fez as pazes com o leque da existência. Era preciso, para não tirar
lascas íntimas de seu sofrer transido. Cuidou de arrumar todo o seu cantinho.
Até, um dia, desparafusada, atrelou a velha mula castrada com nome masculino
de Jeremias, e foi dar uma volta num enorme bosque florido, tirar parceria com
a natureza, cismar. Nessa porção de revisitanças, o tempo ganhou sua surrada
samambaia de crescimento. Passou-se uma década e meia, e Carmem não
reparou na tristeza que ronda o cálice indiferente do longe, no licor de
ausências. Era toda doce com a amiga, da qual recebia até presentes de
épocas, cartões de lugares distantes, poemas variados de poetas antigos,
mortos; até mesmo escritos anônimos vários de séculos passados, alguns de
muito antes de Cristo, de tempos aramaicos e babilônicos. Vestígios de
ausências. A esperança era seu oxigênio, seu eixo norteador.
Um dia, no entanto, enquanto fazia um doce de chuchu que
era uma receita caseira da mãe adorada, descendente de espanhóis, sentiu uma
estranha pontada no peito, como se um risco de gilete a lhe tirar a pele frágil
do íntimo. Um véu de restos na lição da amarga viagem de existir. Estranhou.
Ficou preocupada, de butuca, sondando o devir. A dor parecia mesmo uma
visita externa. A pontada travou-lhe os gestos. Os olhos falharam o prisma da
visão. As mãos murchas abandonaram a colher de barro e pinho. Deus do céu,
o quê era aquilo? Foi quando tudo aconteceu. Era como se uma estranha outra
realidade, cruel, batesse ansiosamente demoradas palmas no portão. A muito
custo olhou pela janela de cortina azul com florezinhas rosas que ela mesmo
bordara em alto relevo. Lá estava ela, sim, era Vida!. De alguma forma algo
dentro de si reconheceu, identificou. Mas, estranhou; estava de mãos dadas
com o seu ente querido, o marido doente, Vlado, que deveria estar vegetando
entre tubos e aparelhos de pacientes em coma na Santa Casa de Misericórdia

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de Itararé? Meu Deus! - o coração disparou um trem ardido, doloroso - o quê
era aquilo tudo? Enxergou e não creu. Olhou-se e não acreditou no que de si
mesma vira. Teve-se pena. Estava velhinha demais. Restava-se acabada nas
tristes azenhas da sua reclusão em expectativa sacrificial. Quanto tempo se
passara desde a primeira cartinha para o maldito jornal? Os canteiros
abandonados. O milharal seco não tinha sido colhido. O poço vazando água
para fora. Os picumãs no teto da casa velha, suja e mal arrumada. O quê tinha
havido, afinal? Seria tarde demais, sim, era isso! Quem vegetara no sonho era
ela. O quê tinha acontecido? questionou, enquanto as lágrimas caiam na face
murcha de anciã, e a dor do assentar-se no tardio ver paralisaram os
movimentos, o sentir, a respiração, a própria cunha vital da vida.
=============================================
(A seguir, três "finais" opcionais para o leitor escolher o seu
preferido, para compor o resultado da ficção do autor)
FINAIS OPCIONAIS
Final Surrealista
Final Trágico
Final Feliz

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0l)-Com muito custo, Carmem balbuciou (ou sonhou precariamente essa nódoa
de intenção) que a bendita amiga "Vida" entrasse, não fizesse cerimônia.
Colocou-se, então, preocupada com o marido que descobriu amar de verdade
naquele momento, pois o ciúme do que supostamente vira tinha essa intenção
recém-descoberta. "Vida" entrou com o seu querido esposo Vlado que estava
meio diferente, reparou Carmem. Abraçou lânguidamente o marido que parecia
frio, estranhamente como se iluminado pelo ar do reencontro, depois de tanto
tempo. Abraçou "Vida" e, antes de perguntar sobre aquilo tudo de inusitado, de
extraordinário que fosse, disse que a adorava demais, que era a maior e melhor
amiga que tivera; como uma asa íntima que era parte de si. Se abraçaram e
choraram. Mas o choro, para Carmem, parecia não vir de dentro da prezada
amiga que afinal conhecera, mas de si mesma, estranhou aturdida, até que o
gume doloroso da dor fatal lhe revelou tudo. O marido tinha morrido há anos, e
aquela amiga solitária e infinitalmente viajada com a qual trocara
correspondências (e que o trazia para recebê-la definitivamente e para sempre)
era na verdade, não a Vida, mas a própria Morte!

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02)-"Vida" entrou e prontamente atendeu a amiga, dando-lhe de presto um
remédio que trouxera de longe, muito longe, do exótico e sábio extremo
oriente. Carmem abraçou como pode o marido, e compreendeu finalmente que
realmente o adorava de alguma maneira, e que ele a amava imensamente
também. Onde se esconde o baú trágico da incompreensível paixão? Então
tinha se recuperado e poderiam passar, felizes, os três, os últimos dias da vida
juntos? Viu que "Vida" estava com um carro branco em frente. Foram buscar as
malas cheias, pesadas. Vida trazia todas as cartas; tinha presentes e também
tinha ramalhete de flores de apresentação. Na cidade soubera do marido da
amiga, e prestativa fora até o hospital onde, como paramédica com experiência
em situações-limites, lhe pensara por dias até sabê-lo fora de riscos. Pois
esperara a total recuperação do marido de Carmem, e o trouxera de volta,
porque ele sentia muita falta da mulher que reconhecera adorar. Vida fez
cuques, sagús, chá silvestre, bolinho de chuva; dançaram valsas, fizeram
planos. Vlado tocou xotes rueiros no acordeom vermelho. Andou rindo pela
chácara, ao beiço da noitinha, com um céu escuro como pele de tatu-bola,
enquanto esperava a sopa de cogumelos para o jantar. Quando tomavam,
juntos, a sobremesa, ouviram pelo rádio, eterno companheiro de Carmem, que
tinha havido uma explosão e vazamento radioativo na Usina Nuclear de Iperó,
cidade ali pertinho de Itararé. Repentinamente um estranho vento (como se de
esquisito lilás xadrez) varreu o lugar, e foi como se Deus tivesse apertado um
interruptor terreal. E um clic apagou para sempre a luz da existência de todos
os seres na tábua de carne da terra.

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03)Carmem, lívida de dor e parecendo estar tendo um colapso, forçou o mais
que pode a visão e observou que, na verdade Carmem estava era com um
senhor mais velho. Entendeu que "ver" o marido que estaria em coma, fora uma
mera visão, um devaneio, uma falha da retina cansada, talvez de nostalgia ou
consciência pesada. Mal se agüentou em pé depois desse faniquito. Desmaiou.
Acordou horas depois, na Santa Casa de Misericórdia de Itararé. Vida estava
ao seu lado, prestativa, solícita, cândida, e aquele senhor que a acompanhara
na verdade era uma antiga paixão impossível dela e que, nas acontecências dos
dias, em viagem (para fugir da solidão) ao Mediterrâneo, o encontrara viúvo e
meio perdido. Então o maravilhoso poder do enorme amor se reencontrou,
coincidindo, se renovando em viço de ternura revisitada, propiciando que o
casal apaixonado, mesmo depois de velhos, permitissem que a paixão
impossível, por décadas, tivesse um terno final feliz. Carmem depois
recuperou-se bem. Ficou sabendo que o marido estava por pouco para escapar
peremptóriamente da morte. Comporiam, os quatro, um ciclo final de
existência feliz em comum, alegres, como no tempo que eram todos jovens e
sonhadores de doce felicidade. Como se puros e dignos outra vez, ali na bela
Chácara Neverland, em Itararé, na Vila Alma-Esperança, na Rua dos Bobos,
Número Zero.
(FIM)

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CARRANCA
Saindo às onze horas do serviço, depois de reger Filosofia da
Educação e Antropologia, em Curso de Magistério, numa Escola Pública do
Município de São Paulo, o Professor Nathaniel Martim, quase cinqüenta anos,
alto, moreno, cabelos grisalhos, barba cerrada já branqueando, tomou o ônibus
Circular e, logo após sete pontos de percurso, menos de quinze minutos,
desceu na esquina de sua residência, um prédio de apartamentos onde morava
num imóvel de dois quartos, no Bairro de Santa Cecília, com a querida esposa
Isaura, de menos de trinta e cinco anos, e pela qual era perdidamente
apaixonado. No entanto, depois de andar uns doze passos, ao invés de entrar
no prédio, um edifício antigo e em reformas por eternos problemas de
vazamento, girando nos calcanhares garrou repentinamente a antiga padaria
cinqüenta metros quase que imediatamente defronte, onde era freguês
conhecido, quando fazia seus lanches rápidos, fiava regularmente pão, leite e
cigarros, agora no propósito de comprar um saco de suspiros rosa, um
refrigerante diet de litro que a bela patroa pedira, também no intento de tomar
umas cervejas e prosear animado com amigos mais velhos, alguns já
aposentados e outros em pior situação: desempregados. Mal adentrou ao
ambiente - cujo dono era o português Joaquim Pimenta - pisando duro como
era de costume rotineiro, algo obeso que era, e ouviu a bruta explosão vindo
do fundo do prédio. O teto e as paredes do edifício de dois andares
desabaram, o peso da construção antiga veio abaixo, um vácuo feito furacão de
impacto jogou Nathaniel padaria à fora, atirando-o para cima, com o refluxo,
depois caindo seu corpo pesado entre dezenas de caixas de repolho-roxo de
um caminhão de feira que, no mesmo instante passava na rua algo úmida, com
as verduras em engradados verdes recebendo o volume de seu corpo em queda
livre, vertical. Apagou direto. Só acordou, quase nove meses depois, quando
foi informado que a sua roupa tinha sido parcialmente destruída, uma pasta sua,
de pertences, sumira; tivera perda de oitenta por cento do cabelo e ainda
tiveram que providenciar um urgente reimplante de pele, pois, por muita sorte
ainda estava vivo, depois de ter vegetado por muito tempo na UTI do Hospital
das Clínicas, para onde fora levado quando os japoneses feirantes o acharam
em petição de miséria, sobre os repolhos e engradados arrebentados e sujos de
sangue. Não portava nenhum documento nessa ocasião, e, quando informou
onde sofrera o problema (que o levara desacordado para ali), os funcionários
da enfermaria confirmaram curiosos e surpresos: o imóvel da padaria ruíra

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todo, as pessoas que estavam nele morreram soterradas, apenas agora sabiam
que ele, apenas ele, por baita sorte, sobrevivera.
Como a pasta de couro marrom que trazia consigo (com provas de
alunos, cheques, dinheiro e documentos) tinha sido achada ao lado de um
estranho corpo desfigurado, com as suas principais características, fora dado
como vítima fatal, como morto, ali se achando na área de tratamento crítico
como um paciente anônimo. Por sorte, tendo ele uma boa resistência física (e
com o tratamento de primeira) acabara por escapar mesmo que sem
identificação e nem sequer ter sido procurado. Aos poucos é que fora dando
sinal de vida, com movimentos lentos, recuperação paulatina, difícil, naquele
tempo todo divagando entre a vida e a morte. Com muito sucesso da equipe
médica especial estava vivo, quase inteiro, com algumas poucas seqüelas
senão que ter que ir em busca da difícil vida oficial, pois que era dado como
finado. Mal despertou, reagindo bem como estava, devidamente avaliado e
tido como perfeito e recuperado para entrar de novo na rotina dos afazeres,
teve alta com o efusivo cumprimento de todos os funcionários daquela ala de
emergência do hospital, pois os atendentes e enfermeiros sabiam que, na
verdade, ele nascera de novo, principalmente por ter sido socorrido a tempo,
além de também lhe creditarem o bom estado físico e mesmo à fé ou a algum
possível milagre da natureza
Inteirado que ninguém o viera visitar, nem o viriam resgatar inteiro
e vivíssimo, ficou num misto de estranheza e de abatimento, de depressão,
também em função dos pesados remédios que viera tomando no soro, ao longo
dos meses ali rendido, em quase coma. Sendo definitivamente liberado, caçou
o resto do paletó em frangalhos, e identificou no bolso interno, da precária
roupa, toda suja de sangue e restos podres de legumes, algum dinheiro que
guardara para pagar uma prestação que esquecera. Saindo do hospital, foi até
uma floricultura e comprou um maço de pequenos girassóis, para fazer
surpresa à querida e bela mulher amada, uma morena-jambo maravilhosa, que
era a própria razão de sua existência de sonhador, de amante, de metido a
romântico e poeta. Ela ficaria emocionada, surpresa. Afinal, estava vivíssimo
da silva e era isso o que realmente importava agora. Sentia alguma tontura,
alguns músculos tensos ainda doendo; trazia sinais do acidente em algumas
partes do corpo, inclusive no rosto, na face no entanto, internamente, os órgãos
reagiram bem, disseram os membros da equipe médica. Tomou um táxi branco
e foi contente para casa, sentindo falta dos cigarros, de amor e de sexo com a
insaciável esposa. Iria pregar um susto na mulher. Depois de tudo bem

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esclarecido, ainda iriam, quando velhos e felizes, rir daquilo tudo de
extraordinário que só acontece mesmo numa megalópole grande como a
encardida São Paulo, qual que um só esgoto a céu aberto.
Desceu na rua onde morava, pagou, e, emocionado entrou no
prédio onde o porteiro Mané se surpreendeu em vê-lo vivo e ainda muito mais
magro, quase que totalmente calvo, além das cicatrizes e da roupa folgada que
os enfermeiros lhe arranjaram quase que por simples caridade, humanismo.
Quase teve um siricotico, o Mané da portaria:
-Mas, o senhor não pode estar vivo! Deusolivre e guarde dr.
Nathaniel, exclamou estupefato o paroara serviçal, corado de susto e medo. E
acrescentou: -"O sr. está parecendo um fantasma, um “franquisteim”, “uma
alma do outro mundo". Nathaniel pediu um cigarro quebra-peito ao
funcionário. Depositou os girassóis frescos sobre a mesinha de entrada do
prédio, e até esboçou um sorriso curto por causa da recente operação perto da
boca, o que reduzira seu queixo, pois o maxilar inferior tinha sido quebrado.
Mal assentou de indagar da esposa ali acima no terceiro andar, e foi
surpreendido com a péssima notícia:
-Sua esposa, Dona Isaura? Mudou, já faz uns seis meses e
tanto. Aliás, voltou para Itararé, de onde os senhores eram. Parece-me que até
arranjou companhia novamente, o sr. sabe; o sr. foi dado como morto, houve
velório, enterro, choro, missa de sétimo dia, essas coisas.
Nathaniel achou aquilo tudo esquisito demais. Era muito
estranho. Não fazia nenhum sentido, ponderou para si mesmo. Ficou
impressionado. Pediu para subir e ver com os próprios olhos, se o apartamento
que era dele, comprado em cem prestações que ainda estaria pagando (mas a
sua morte quitaria a cara dívida), e teve outra surpresa. O apartamento estava
mesmo alugado para um casal estrangeiro, que alegaram ser a proprietária a
Dona Isaura, que ele lhes era totalmente desconhecido. E ainda confirmaram: a
dona do apartamento que locavam, perdera o marido numa explosão ali na
padaria do Português, na esquina da rua. Com o suposto morto, e a patroa não
tendo parentes na capital paulista, então a pobre viúva retornara à cidade natal.
Nathaniel ficou boquiaberto com aquilo tudo.
Tomou um ônibus circular e foi até uma empresa jornalística que
ficava no centro velho da cidade, lá conseguindo o exemplar do jornal que
dizia da trágica explosão, do desabamento e tudo mais, provocado por
vazamento de gás do forno da confeitaria. Sim, conferiu; seu nome realmente
estava na lista dos dezoito mortos, oito funcionários e dez fregueses. E a nota

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policial informava que, curiosamente, um dos mortos só foi localizado ( e
identificado oficialmente) pelas peculiaridades como óculos e boné, por estar
o corpo quase que destroçado; porque estava o cadáver sobre uma pasta que
identificava seu portador com características iguais. Nada mais restava a fazer,
pois fora isso tudo era irreconhecível.
Ficou aturdido. Não achou graça naquele equívoco todo, mas,
ponderou, só mesmo numa metrópole enorme e, às vezes, desumana aquilo
seria crível. Passou na imobiliária que cuidava da locação e se identificou
como marido de Dona Isaura, a herdeira, mas foi informado que ela o tinha
como falecido, passara os bens para o nome dela, recebia pensão dele,
inventariaram tudo, e tinham se ido embora para Itararé, cidade do interior, ao
sul do estado de São Paulo. Lá recebia, mensalmente, a pensão de viúva e o
crédito de aluguel, que o imóvel que herdara rendia religiosamente. Nem
acreditaram muito naquele tipo, quer pela roupa esquisita e folgada, quer pela
aparência de doente, débil mental ou mal curado. Só deram as informações por
mera bondade ocasional, ou, quem sabe, querendo livrar-se daquilo que, se
fosse quem dizia que era, estava mesmo oficialmente morto. E o Dr. Nicolau
Santucci, da empresa imobiliária, ainda sentenciou: Parecia-lhe que a viúva
tinha casado com outro. Nathaniel perguntou-se, intimamente, até onde iria
aquilo tudo de terrível, de inusitadamente inacreditável. Parecia um causo de
Kafka, Murilo Rubião ou mesmo de Nelson Rodrigues. Barbaridade. A vida
estaria lhe pregando uma peça de mau gosto, de terrível humor negro? Estava
com algum dinheiro ainda, por sorte que a enfermeira-chefe guardara o resto
do paletó arrebentado e tinha sido honesta. Tomou o metrô, ali na estação
Liberdade, ganhou a linha da Barra Funda e, em menos de duas horas
embarcou no ônibus intermunicipal para Itararé, onde não tinha outros parentes
que não aquela que o esquecera, o perdera, o largara logo e facilmente. Foi
uma viagem angustiante de quase seis horas. Mal pegou num sono ralo e
sonhou que tinha saído do inferno, para entrar dentro de um enorme ponto de
interrogação. Seria um aviso? Acordou com sudorose, ainda sob o efeito de
tantos remédios que tomara em doses cavalares, para subsistir, sobreviver, dar
naquilo tudo. Para isso é que sobrevivera? Tinha que ser forte, cobrou-se.
Tudo se ajeitaria, considerou. O coração batia espremido. Parecia ter a alma
pisada, e a mente com um dínamo, marcando o ritmo doloroso do medo, da
frustração e até de uma tristeza desaprendida que mal cabia em si. Em Itararé,
onde já não tinha amigos pois deixara a cidade muito moço, perdendo os pais
logo depois e com os dois irmãos vitimados num acidente aéreo em viagem ao

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Cairo, com o endereço dado pela imobiliária, foi à cata do lar, da esposa, da
felicidade perdida. A reboque de uma nova expectativa cruel. Estava
desconfiado. O rosto ainda mal cerzido, meio cadavérico, a perna esquerda
puxando um pouco, mas que logo ficaria boa, umas costelas já colando por
conta de tanta químioterapia, parte do cabelo crescendo e a mão direita com
marca de queimado recente, além do peito quase todo enrugado e sem pelos,
depois de uma delicada operação de reposição de um terço da epiderme. Uns
dez quilos mais magro, boca seca e torta, olheiras, apertou a campainha da
casa onde disseram estar seu norte de identificação, sua reintegração a um
convívio lícito, qualquer que fosse. Apertou outra vez, impaciente, a
campaínha chata e, abrindo-se a porta da casa surgiu a sua esposa Isaura,
grávida de alguns meses, notou, pois que antes ela era bem esbelta, vaidosa e
de fina silhueta. A mulher, assustadíssima, ficou estupefata a lhe sondar
curiosa para saber quem realmente aquilo de surpresa era. Parecia conhecido.
Um fantasma, uma aparição? Depois que colocou acentuado reparo, não
acreditando no que via, não mais conteve a enorme surpresa num grito
lânguido, plangente, segurando-se no batente de peroba, despencando em
seguida, num desmaio lento de olhos virados e músculos frouxos. O quê era
aquilo tudo?, cobrou-se Nathaniel, olhos arregalados, mãos trêmulas, coração
em pandareco, angústia no cadinho sublimado da dor. Num remendo de
minutos, vizinhos caipiras aportaram curiosidade nas janelas, e o tal marido
novo de Isaura, bem mais moço, correu socorrê-la nervoso e prestativo. Mal
pensou-a, acomodando-a num banco do ajardinado com gerâneos de pencas, e
assuntou, rancoroso, aquele tipo em frente da casa e logo imaginou: pelas fotos
que vira num álbum antigo: aquele traste pelo jeito, pelas relembranças bem
apuradas; devia ser o ex-marido de Isaura. Natahiel, no seu enfoque, lívido de
raiva e ciúme ainda inquiriu-se: Então aquele rapagão era o que levara Isaura
no bico? Onde ela o arranjara? Quem era o babaquara? Por quê um tal
casamento rápido, num arranjo de romance sem eira e nem beira? Onde já se
viu aquilo? O coração cortava as fibras da memória entrevada. E aquela
gravidêz? Isaura, afinal, não era estéril? Ou ele é quem era? Ficou nervoso.
Irrompeu-se contra o moço, que a todo custo tentava a respiração normal da
mulher, quando foi contido por vizinhos já aos montes e alvoroçados, que logo
chamaram a polícia, acreditando que algo de anormal estaria acontecendo
naquela casa. O novo casal ali na Vila Gaya era querido; eram felizes, e a
ordem tinha que ser restabelecida a todo custo.

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Depois de precariamente identificado, Nathaniel foi então
inteirado de tudo, tendo sido informado que a esposa o dera como morto de
papel passado, e, como tinha um amante por meses - já não o amando mais
mesmo - casara com aquela nova paixão; tudo se arranjando no confeito triste e
trágico das circunstâncias que coincidiram. Na frente do Delegado-bacharel,
conhecido popularmente como Dr. Feijão, Nathaniel, feito um bobo, ouvia tudo
silente, vigiado por policiais sisudos e abruptos. Os dois pombinhos tinham se
casado num terreiro de candomblé da Dona Santa, mas não no civil; tinham
assumido a paixão secreta, viviam bem e em paz. Logo, Isaura, mesmo com
mais de quarenta anos, engravidou, e então a felicidade se fez completa,
serena, maravilhosa. Como, no entanto, para a idade dela a concepção era de
risco enorme, como o marido era oito anos mais novo, o Delegado inteirado de
tudo, instruiu Nathaniel que contratasse advogado na capital, que não
pertubasse aquele lar, aquele casal de respeito na comunidade, e que fosse
mexer com os papéis em São Paulo, pois, oficialmente ele nem estava vivo,
assim não tendo direitos legais, nem mesmo para ser detido, ora veja. E quem
não estava vivo, não poderia reclamar, ser fichado, sequer pedir ajuda à lei
naquelas circunstâncias inusitadas para todos, devendo de imediato sair da
cidade, dar no pira, ficar calado. Que fosse atrapalhar outro, cantar noutra
freguesia, não bagunçar seu coreto ali. Reclamou que em Itararé já tinha tantos
problemas inusitados, e até explicou os entreveros, como um tal tipo que se
dizia anjo e que entregava bosques, pomares e plantações de sonhos no
coração das pessoas que depois ficavam como se alumbradas, pintando
primitivismos coloridos, fazendo poemas feito contemporâneos salmos de luz,
dançando sinusosos balés imaginários, como serelepes bípedes pelas ruas de
cacau quebrado que eram os paralelepípedos lustrados da cidade. Tinha,
ainda, para resolver, uma espécie de crime perfeito, que era o louco amor de
um velho iluminador de cenários que se apaixonara pela filha cega do
amolador de facas. Tinha, portanto, muita coisa séria para se empatar no
cuorador do tempo, pois parecia até que, alguma bendita coisa de sobrenatural
estaria acontecendo de se encantar ali em Itararé. Nathaniel viu-se de cabeça
pra baixo, pendurado na forca cruel e injusta do mundo. Estava de ponta
cabeça dentro de um buraco sem fim, em péssima situação. Parecia empacado
em tantas coisas incríveis, entre um hospício e um circo de horrores. Era uma
situação estúpida e bisonha que a orquestra das coincidências facultaram de
permitir. Sentiu-se algo enojado. Até onde iria aquilo tudo da vida
conspirando contra si? Pensou em se matar. Não, não faria aquele favor à

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mulher traiçoeira que nem vestira luto por ele. Pior, já o traía com aquele
estrupício ali. Teve que segurar o ímpeto para não pegar a arma do guarda
Batatinha, e acabar com o tipo feiçudo e metido a galã de meia-tigela, que a
mulher, sem-vergonha, arranjara de maldade e sem caráter. Isaura até esboçou,
desenxabida, um curto pedido de desculpas, de perdão, afirmando não amá-lo
já há uns cinco anos, mas, apesar de tudo só agora era realmente feliz como
nunca, não querendo mexer no húmus do passado, e nem mesmo vê-lo nunca
mais, para não ficar assustada, atrapalhar a bendita gravidez e mesmo o tempo
do parto que podia ser de risco. Que ele fosse, pelas vias normais - iria longe
a demanda na justiça lerda e burocrática, corrupta - caçar seus direitos.
Nathaniel se perguntou onde errara? Era feliz, fiel, tinha um lar montado com
muito suor e carinho, tinha um bom emprego, uma profissão, pagara também a
Faculdade de Artes da mulher, no entanto parecia que o inferno conspirava
contra ele, o caroço do mundo abrira um buraco negro e ele ali fora atirado
como se um bobo, um cretino, um destramelado. Ficou um bicho, contendo o
animalesco dentro de si. Que processos que nada. Se pudesse faria justiça com
as próprias mãos, mataria a todos, se mataria depois. Queria seu salário e
emprego de volta, seus bens, sua casa, seu telefone, seu computador cheio de
rascunhos de romances inéditos com finais trágicos ao estilo de Shakespeere;
seus direitos civis de cidadão-contribuinte íntegro, correto, ordeiro, cristão,
pagador de impostos. Largara toda uma carreira literária de Poeta Concreto
para ter vida em comum com a mulher que acreditava como a verdadeira e
definitiva paixão de sua vida. Como estivera errado. Fora preciso ter estado
dentro da morte, para enxergar bem e claro o funil sujo da vida. Aquilo tudo
não iria ficar assim. Agora aquele seu existir pendurado num fio tênue de
anonimato e loucura no mesmo feitio. Teria que aprender a odiá-la. Teria que a
deixar em paz, para não vê-la e o quase incontido desejo de matá-la. Não
queria sofrer mais, vendo-a engordando uma cria de outro desgraçado, ainda
se julgando feliz, nas mãos de um tipo qualquer de interesseiro, talvez
depravado, um "chupim", como dizia o folclore ali em Itararé. Quase que teve
um siricotico de ódio, de raiva, de angústia. Quase que pendeu-se num
faniquito cerebral. Quando quis reagir àquele pesadelo que assistia acordado,
sentiu-se num outro lugar, num outro tempo, numa paisagem mórbida, perto de
um lixão a céu aberto, embaixo de um viaduto fétido, entre ratos e outros
pobres coitados de excluídos sociais, sub-seres humanos descamisados,
moradores de sujas ruas periféricas. Estava dormindo ali, inchado, cheirando
mal, roupa suja. Descobriu-se: era um mendigo e pedia esmolas nos faróis,

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assim sobrevivendo e tomando porres homéricos com os tostões arrecadados à
míngua. Sem forças para reagir, subsistia bem na convivência solidária ao lado
de outros pedintes rueiros, marginais, traficantes, prostitutas, proxenetas e
petulantes policiais violentos e corruptos. Nunca mais teria vida social, seus
empregos foram dados a profissionais mais novos, estava velho para concorrer
no mercado, ter vida própria; seus documentos, sua paz interior. Vegetava
como podia. Pedira falência daquele modelo social e familiar de existir. Quem
iria acreditar nele? Processos custariam muito dinheiro. Advogados exigiam os
olhos da cara. A rua agora era seu charco. De companhia, os corvos quase
cegados pela poluição lazarenta, e ainda assim, tonteados, procuravam carne
podre nos lixões hospitalares, entre menores abandonados, prostitutas pobres e
doentes, velhos sem filhos de espírito amoroso. Assimilara a dor das perdas,
como se esculpisse uma carranca na alma transida. Dentro do peito entrevado
havia um labirinto maior. Feito do mais urdido e amargo absinto. Até que tudo
estranhamente começou a acontecer, desvirando a situação.
FINAIS OPCIONAIS
Final Trágico
Final Feliz
Final Surpresa

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01)Um dia, Nathaniel, mendigo mal cheiroso e acabado em suas estruturas
humanas, emocionais, transido, fronte com rugas, carranca cerrada de dor
íntima, leu sem querer, de passagem, num poste (entre tantas propagandas de
partidos liberais e políticos corruptos entre convites para shows eróticos), sua
foto de mais moço, com uma solicitação imperiosa de que ligasse para um fone
de número tal, que era questão de vida e morte; pagariam pela informação
urgente que o localizasse, pelo contato de emergência. Ou que comparecesse,
com rapidez, a um endereço que era de um hospital de renome na zona sul da
cidade grande. Era ele, sim, reconheceu. A cara, o nome; ficou triste,
surpreendeu-se. Achou esquisito se achar. Até tinha se esquecido de como era.
Reconheceu-se na foto e quase chorou. Achou-se, finalmente. Teria ficado
louco? Então o queriam de volta; um bendito chamado que seu coração
respondeu primeiro. Os papéis estavam colados em vários postes, por toda a
área do centro velho da cidade, aos milhares, reparou. Foi em busca de sua
honesta identidade, de sua verdadeira vida. A mulher tivera uma complicação
na gravidez em idade de risco, e precisava de seu cartão de convênio médico,
em conjunto, para escapar do pior, cuidando-se num hospital caríssimo. O
novo convênio que fizeram - ainda com carência e pouco recurso - não cobria
a situação, não valia o risco. Ele era a única saída, a salvação, talvez da
criança e de Isaura. O antigo convênio, dele, se colocado em dia, valeria o
reencontro, o tardio reconhecimento. Resolveram que achá-lo vivo e sóbrio,
era a única saída para o risco que teria que ser resolvido rapidamente e bem
antes do parto. Sim, ele, um coitado, atirado no estrume da rua, poderia cuidar-
se, identificar-se, assear-se, vestir-se bem e levar a esposa ao Médico (como
se a gravidez também fosse sua) que em seu santo nome reassumido, se
salvaria, apesar do filho ser de outro, e ele estar oficialmente até então dado
como morto e esquecido. Nathaniel foi bem tratado; poderia intermediar pela
internação e cirurgia. A esposa, destemperada, implorou aos prantos, ajoelhou-
se, pediu perdão, pediu apoio, ajuda, caridade, por Deus! Falou que depois de
tudo lhe daria o necessário divórcio, venderia o apartamento e lhe daria a
metade do valor apurado; deporiam a favor da existência verossímil dele no
rol dos vivos, confessariam a tramóia, devolveria a pensão, não quereria mais
nada que salvar apenas a tão desejada criança. Que ele se reintegrasse à vida
de cabeça erguida e pela porta da frente, desde que ela tivesse paz com seu
grande amor, sua consciência, seu filho, talvez o herdeiro único, a benção de
Deus. Nathaniel não aceitou logo a idéia. Precisava pensar direito, sem
emoção. Nem rápido funcionava seu coração pisado ou seu cérebro doente.

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Também não quis banho de loja, nem adjutório. Saiu disfarçadamente
capengando, quase fugindo camuflado do consultório, fronte erguida, deixando
em prantos a ex-esposa maldita e seu maridinho de ocasião. Seria cruel, como
foram com eles. Preferia continuar anônimo a fazer um favor daqueles.
Acostumara-se a ser arraia miúda, um borra-botas da sociedade hipócrita, sem
ter onde cair morto. Sim, assumira ser um morto oficial, a ter que ajudar aquela
a quem amava ainda, entre um misto de ódio e loucura de amor. Para ele,
traição daquele tamanho não tinha preço de acerto, perdão. Para ele, amor
nenhum nunca mais valeria nada. A perda interior não tinha medida ou limite.
O amor dele, para ela, seria para sempre. Não como o dela, vencido, falso,
amoral. Sabia que estava sendo mórbido, mas essa lição aprendera na difícil
sobrevivência das ruas de São Paulo. A rua era seu preço, o seu lar, a sua sina,
o seu pecado até o fim de seus dias.

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02)-Nathaniel não acreditou na cara de pau da ex-mulher que estava gorda,
rósea tez. Mas procurou entendê-la ainda transido e algo fora de si, no triste
reencontro difícil. Tudo aquilo mexera com cisternas íntimas. Paixão cruel
revisitada. Estava desacostumado de ser ele mesmo. Por aqueles meses tinha
vegetado feito outro, estranho de si. Ganhara uma melancolia diferente dentro
da carranca da alma, concluiu. No peito, um vazio enorme, um medo amargo de
viver. Criou um remorso de vê-la ali, implorando ajuda, para conseguir valer-
se de seu cartão e convênio médico sem necessidade de carência, desde que
colocadas as prestações em dia, a perder o bebê ou talvez até morrer junto por
não ter recursos de grande monta. O convênio novo que Isaura fizera, não
pagaria o custo, era barato. Nathaniel compreendeu que a amava muito ainda,
mas já sabia lidar com o conflito, a dor, o orgulho ferido. Era a rendição às
evidências. Não queria nada. Nem voltar ao rol imoral da sociedade inumana.
Na rua, a lição dos miseráveis é dolorosa, violenta, definitiva. Não se podia
conviver em paz com tristezas e renúncias. Aceitou fazer o papel de salvador
da felicidade de Isaura. Só cobrou, peremptório e sem deixar escape ou saída
para o casal: Queria que o filho deles, que já sabiam varão, tivesse seu nome,
Nathaniel. Sim, lera num lugar qualquer que Nathaniel era nome de anjo.

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03)Nathaniel foi rancoroso ao encontro com os malditos, armado com um
estilete enferrujado catado de um bêbado que morrera (e apodrecera)
escondido na rua. Por telefone soube o problema que eles tiveram com o
convênio médico, precisando do convênio melhor dele, sem carência, apesar
de atrasados os pagamentos que se ocupariam de colocar em dia, e ficou
encruado no seu doloroso canto fétido de cismar. Ofereceram dinheiro, os
malditos, os desgraçados. (Aquela faquinha ruim e enferrujada, ficaria muito
bem se acalcada com força e raiva na barriga da mulher maldosa: anularia o
fruto da traição. Talvez até, completando o serviço,degolasse o janota boçal
do amante dela.) Eram felizes às suas custas; não tinham esse direito. Eles
todos iriam pagar muito caro o que fizeram da existência dele, ensimesmou,
com uma carranca feito chuva negra. Pensando nisso, furioso, a caminho do
hospital onde o pensariam novamente, assinaria papéis oficiais, o tratariam
bem, atravessou o farol sem ver se era vermelho ou verde, pois estava ficando
com problema de visão e surdez. Foi quando ouviu, bem de perto, o horrível
berro da ambulância que veio sobre ele como um bisonte furioso, pegando-o
bem em cheio, atirando o seu corpo já morto no baque, num canteiro de
begônias quadradas, ali na apressada Avenida Paulista, mal sabendo que,
como por um milagre, o bebê de Isaura escaparia vivo e sem quaisquer
seqüelas, como um milagre ocorrido ainda no ventre da mãe. E ele, pobre
coitado, incorporaria o espírito da criança, novamante então, de novo, nessa
havência, como filho único da mulher amada, pela qual teria eterno,doentio
abismal e irrecuperável Complexo de Édipo.
(FIM)

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A VISITA
Somente os claros lírios de São José, as cabras de raça pura e as
enormes gaiolas com canários-do-reino é que perceberam claramente.
Aliás, o próprio Bairro Velho começou a ter mais conhecimento e fé,
num alumbramento por atacado. Onde já se viu? O velho Sebastião Rosa só
podia ser mesmo, um baita santo.
Tudo começou quando a idade dos quase oitenta anos bateu, e o
bendito ancião não morria de jeito nenhum. Teve todas as doenças da chamada
terceira idade, ficou passado de senil, mole de esclerosado, mas os miúdos
olhos murchos quase vestidos pelas pálpebras pesadas não fechavam para
sempre, de uma vez por todas. Será o impossivel? Os pés tortos e com
manchas inchavam, a boca amolecia de dar dó e cairem os beiços fartos, os
gestos lentos e largados eram distantes, frágeis e disformes do real, mas o
velhote querido não finava como deveria de ser um curso até normal da
própria havência. Os rios eram novatos, um dia ficavam jovens, fortes,
perenes, depois envelheciam. As árvores eram sementes, talos, caules;
frondosas, com flores e frutos, depois carunchavam e secavam como se
espantalhos. Era o círculo normal da vida, da natureza. Por que ele não haveria
de ter um bendito dia para, num mero átimo de segundo para suspirar e esticar
serenamente as canelas? Ali tinha dente de coelho. Sem tirar nem pôr.
Andaram cismando arreparos. Buscando ajudas. Um presbítero
crente, de origem inglesa, foi ao bucólico Bairro Velho chamado por um
vizinho preocupado com aquela sina estranha. Um bispo babaquara atrelado ao
arcaico Vaticano medieval, veio de mão beijada fazer uma espécie de
exorcismo refinado, com estilo, santos falsos e muita pompa inútil. Até um tipo
feiçudo, de uma linha espírita chamada Mesa Branca deu as caras e, mesmo
com siricotico orquestrado e benzimentos com arruda-brava, não resolveu
nada. O velho estaria emperrado no gomo dessa existência?. Desenganado por
caros especialistas competentes, foi pesquisado até por cientistas
internacionais da Nasa que viam-no como um caso raro e especial em todo
favo histórico da humanidade. O velho só tinha viço para os canários-do-reino;
para o seu jardim de lírios, para as suas cabras leiteiras de criação e zelo.
Depois empanturrava-se de mofo e ácaros no quarto já seboso, e ali ficava sem
comer, sem obrar, sem tomar água ou feitio de empenho pela vida que ainda
assim o mantinha em sobrevivência. Como um destino desigual para o pouco
compreender que há no pensar coletivo comum. Todos já tinham aprendido a

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pior lição que a vida podia fazer um ente ruminar: a existência não valia o seu
sentido peculiar. Para os boêmios de Itararé, amantes da errante vida notívaga,
a morte era a coisa mais mal-distribuida da existência e assim mesmo aquele
Tião era especial de alguma maneira: não tinha o prumo da morte nua em seu
mistér mais íntimo, desconhecido; como uma resignação familiar ou um
desígnio terreal, inexplicável.
O sujeito deveria de ter alguma coisa. Alguma canga sensorial, um
mal-feito acerto de contas que nunca empatava seu tempo na tábua de carne do
que rotulamos viver. Tentaram todos os exames. O homem já nem parecia ser
desse mundo, com a descosida pele alva e fina mostrando os vasos sanguíneos
roxos da carne, de dar medo, quase transparente e ainda despregada dos ossos,
mostrando o seu podre interior. Variava, tinha crises, tonturas, depois dava-se
num arremate de cerzir-se num contexto qualquer, e, estranhamente renovado
de alguma maneira, saía alimentar seus lindos pássaros cantadores, dar banho
de algodão molhado nos eriçados lírios de São José, além de milho de
primeira para as cabritinhas brancas e só. O prestimoso dr. Jonas de Alencar
que acompanhava o caso a crédito da família, incomodado com a situação
incompreensível e sem ser fiador da eutanásia, receitou até alguns remédios
para aliviar dores e tensões, mas compensou dizendo que a devastação
emocional do paciente era o que lhe provocava destemperos e até alguns
estranhos eventuais ataques de epilepsia.
A bem da verdade, Seu Sebastião Rosa era querido por atacado.
Calmo, tranqüilo, ordeiro e sereno, era um histórico sanfoneiro nascido e
criado ali mesmo, pertinho do chafariz do Bairro Velho. Tinha toda as belas
virtudes de um ser humano feito anjo; pau pra toda obra, filantropo. Era,
profissionalmente, um pintor de paredes. Caiava-as com carinho e preços
módicos. Em áureos tempos de boêmio, tivera rearranjados trejeitos e voz de
tenor-barítono. Alto, espigadão, uma pele cor de mandioca descascada,
descendia de portugueses, Cristãos Novos de Funchal, Ilha da Madeira,
Portugal. Era prestimoso e adorava belas pescarias, suntuosos festins de
romeiros e quermesses fervorosas; além de armar arapucas de taquara que isso
era lá com ele mesmo, quando caçava seus delírios, em vôos íntimos. Curtia
ainda seu chimarrão com rapadura (invencionice dele); adorava andar a cavalo
campeiro troteador e criar cabras em casa para ter queijo fresco de cura
especial, além do que fazer na idade que ganhou acréscimo de tempo em
préstimo e empenho todo especial.

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Um antigo companheiro, que com ele também tinha sido reco do
Tiro de Guerra, foi quem levantou a toleima de um "causo", por assim dizer,
que nos idos de 1930 ele teria cometido um deslize de comportamento. Depois,
a prosa trivial que às vezes é santa e outras vezes maldosa, caiu direitinho na
colher de barro do esquecimento quirera. Desde esse morre-não-morre
entrevado, o lampejo dos dizeres ganharam tomo de novo ali nas conversas
fiadas dos parentes todos, que passavam de mil no balaio do clã. O Seu Tião
tinha se envolvido, quando ainda um mero rapagão destemido, janota e muito
faceiro, numa querela inusitada e fora de propósito, com um imberbe gaúcho
bêbado e metido a sebo, que viera com a comitiva de revolucionários de
Getúlio Vargas para Itararé, quando da Revolução de l930, na antevéspera da
histórica e famosa batalha que na verdade não houve. O Tião, então um
simples cabo servindo na Força Pública paulista, tinha atirado, de sopetão, e
matado um soldado inimigo que era filho primogênito de um carcamano grosso,
metido a valentão de bosta, oriundo de uma freguesia de arrozal de
Farroupilha, Rio Grande do Sul. Foi um guaiú dos diabos. Depois de Vargas
arreado no Poder, veio um Interventor de São Borja para Itararé, nomeado
pessoalmente pelo Presidente, apurando fielmente que tudo tinha sido quase
que uma mera legítima defesa, mais ou menos um acidente bobo que começara
com puerís agressões verbais de lado a lado, de parte a parte. O Cabo Rosa foi
inocentado legalmente, nas barras dos tribunais, nos trâmites da lei. Só que,
por qualquer motivo estranho, desconhecido, alguma semente de ressentimento
deve ter se aprumado na consciência que em peso ali fincara andaime triste,
reservado, reinando mourão negro no interior. Depois o lanho íntimo fora
ganhado peso de ruínas na alma, caíra no radar de bloqueio entregue ao
caminho natural de morte por velhice. E assim o velho não morria e esse era o
assunto bento de toda a região de Itararé. O quê estaria havendo?
Que facho se ascendera no seu interior transido? Por quê aquele
arremate de pensar pesado feito um lazarento de matador torpe? O que era
mantinha de vestígios na sua sensibilidade de bom bisavô, carinhoso avô,
ótimo pai, excelente filho, solidário irmão, cidadão exemplar, ordeiro e
caridoso? Pois ele carregava consigo essa acontecência, sem rédea de controle
que pudesse descansar finalmente em paz (após um derradeiro suspiro) e o
definitivo fenecer que a Deus pertence, como selo comum do homem desde o
princípio de todos os eios da terra.
Será que era só uma boba toleima íntima? Antes fosse de-assim.

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O tempo passou largo, imedido, e o Patriarca era visto como se um
"cordeiro de luz", um Enviado; um santo abençoado pela vida eterna no raso
plano terrestre. Mas ele não recebia visita nesse fito, nesse propósito cristão
que fosse. E ainda assim tinha seus repentes vitais e, volta e meia, de novo lá
estava se arrastando como um bicho enorme de grotesca aparência humana, no
sentido de dar semente de girassol para os canários de raça, agüinha fresca
para os lírios bonitos, capim-cheiroso para as cabras de estimação.
Com o passar das décadas e correndo a fama de tal sofrência,
começou a juntar curiosa gentarada no quarteirão de toscas choupanas
humildes do Bairro velho, onde o bem montado casarão do Velho Tião Bento
se destacava e que se acostumara de chamar Solar do Clã Rosa; uma antiga
casagrande atrelada a vários sobradinhos verdes de meia-cuia, e onde a
parentada fincara lares de paredemeia e viviam abençoados sob sua visão de
sábio, doce e fino patriarca, como exemplo e candura fora do comum.
Pois vieram os calcanhares dos anos todos e o Sebastião durava
como se a própria havência fosse uma enfermidade de culpa, entre o sagrado
pêndulo do perdão, do pecado, e o pântano da consciência na espera final que
o livrasse do maldito fogo do inferno eternal. O que antes fora um encorajador
de forrobodós e serestas rueiras, um parceiro atiçado para banhos de minhocas
no piscoso Rio Verde, ali era como se uma espécie de beato especial
vegetando. E a cidade fervia de gente querendo sabê-lo; todos a virem vê-lo
em caravanas, em procissões que até assustavam as imediações e provocara
inveja num adunco padre conservador da paróquia central no centro velho da
cidade de Itararé. Essa gente humilde queria saber aonde ele morava, sonhava
tocá-lo, tendo-o como um filho especial do Criador. Como se pudesse, com
esse dom de não morrer nunca, curar doentes, realizar milagres, benzer
crianças com bugreiro ou amarelão, curar inválidos. Mas ele sequer seguia
direito qualquer seita que fosse exatamente única, muito menos religião de
carteirinha era pois bem entendia que para ser verdadeiro filho de Deus não
precisava disso, a não ser temperar a marmita dos dias em postura altiva,
idônea, comunitária, fazendo caridade silente, amando o próximo como se a si
mesmo, sendo gente no sentido mais pleno da palavra pessoa.
E assim seu destino ganhou o regador do tempo, passando de mais
de cem anos. Mesmo quando não se alimentava, ainda assim não morria. Que
oxigênio divino era seu manjar de luz ou espírito? Seu estar era como se um
desacorçôo de Deus em dar o definitivo pito da morte cabal e plena. Os filhos
adoravam vê-lo vivo mesmo que, às vezes, cheirasse a carniça viva da

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verdadeira podridão que é a espécie humana. Sabiam que só pele e osso não
significavam muita coisa ou uma presença viva no contexto do existir. E as
procissões de romeiros curiosos iam e vinham para Itararé, oriundos do
Paraná, da Argentina, do resto do Brasil todo, mais uns esotéricos gatos
pingados da América rica e até beatos espiritualistas da Europa. Vinham com
tendas, velas, cruzes, rezas enormes, rosários de liturgias medievais, surgindo
aqui e ali, um tal de "causo" de milagre muito mal-desenhado ou de
inexplicável efeito psico-somático nas coincidências das circunstâncias que às
vezes montavam fanáticos circos de absurdo, quando não a daninha exploração
da fé dos pobres coitados, virando de haver, semeadas, umas barracas com
fotos retocadas do velho, inventadas orações por ele supostamente escritas em
transe, espúrios santos de barro com sua cara muito mal talhada, ainda mais os
suspeitos camelôs exóticos e católicos dito carismáticos traficantes de objetos
quase circenses para mentirosas adorações falsas. Isso tudo e uns babaquaras
vendedores ambulantes de fora da região, espertamente explorando
religiosamente a situação que demorava de ter fim mas dava lucro imoral para
uns quantos comerciantes sem escrúpulos. Coisa própria da exploração
capitalista de Terceiro Mundo na miserável américa católica. Até que um dia o
ancião foi solicitado para ser visitado por um estranho. Um Estranho? Onde já
se viu?
O moço, novo, no favo das acontecências das redondezas de
Itararé e derredor, um verdadeiro estrangeiro (ou "emboaba" no dizer dos
mais antigos) aparentava, se tanto, ter uns trinta anos. Branquelo e corado,
cabelos longos, crespos e claros como o sol de meio-dia, barba ruiva por
fazer, olhos brilhantes como se de lindo quartzo-anil. Mal-e-mal o tipo deu-se
ali no Bairro Velho, na frente da casa do porqueira arigó do Tião Rosa,
misturado a romeiros e curiosos, querendo porque querendo, em particular, um
fiapo de prosa com o moribundo encalacrado nesse vão do cosmo; rogou uma
palavrinha com o morto-vivo, um quase acerto pessoal de contas na intimidade
serena da permissão possível. Falava delicado, respeitoso, curto. Era calmo,
sereno e seguro de si. A família que estava desesperada com tanto forfé
poluindo o barulhar do bairro periférico, que estava horrorizada com aquela
gentalha humilde, iludida e sem recursos; que estava preocupada com o
assombro da ciência mundial a respeito do querido ancião, com a quebra das
intimidades do lar, com vizinhos insensíveis já reclamando e pondo os bofes
de fora, sem mais nem menos, como um desencargo de consciência, deu a
gloriosa e inédita da tal permissão como se simplesmente para livrar-se de

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querelas, bobas maledicências ou contendas de algum mal intencionado
repórter de sucursal no exterior. Mal consentiram, deram o sim curto e
desconfiado, e o tipo alto, calçando sandálias de couro crú, face clara como se
não tivesse sangue de parceria com os humanos, entrou na sala da casa pintada
de um azul leve, solicitando candidamente que todos os parentes e próximos
ali entocados fossem tomar ar puro no derredor que mais parecia uma feira, um
circo, uma quadrilha se arrumando para temporão entrudo caipira. Pois não foi
nem um tomo de segundo, eis que os familiares voltaram para casa assim como
se a sondarem alguma coisa de novo ou inusitado, quando não uma acentuada
implicação com o estranho, e viram que o moço recatado já tinha se ido
rapidinho. Por onde o estranho saíra da Casagrande? Desconfiaram. Será o
impossível? Mais: o velho finalmente estava gélido, olhos abertos com uma
serenidade angelical, postando no rosto franzido um sorriso inteiro, manso,
delicado, como se no gume de uma aceitação definitiva. Finalmente. Tinha
acertado as pazes com um adeus íntimo. Com tardança tinha morrido, graças a
Deus!, como se depois de uma acertada trégua de paz com o muito além da
eternidade.
Nunca ficaram sabendo realmente o que houve com a tal estranha
Visita?
FINAIS OPCIONAIS:
Final Especial
Final Místico
Final Surrealista

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01)Só repararam que os belos canários todos tinham sido libertos, e, num
pessegueiro florido mesmo em época temporã entoavam contínuos e maviosos
trinados longos, belíssimos, límpidos como a flor da alma pura da mais perene
e angelical manhã. Como se trinassem hosanas para alguém. E ficaram nesse
floreio magistral por sete dias ininterruptos. Os membros do Clã do Sebastião
Rosa, repararam ainda que a casa que tinha sido caiada recentemente de tons
azuis, estava como se numa espécie inexplicável de radiação diferente, como
se de uma espécie inexistente de gelo radioativo, feito o que mal-explicou um
tipo mais inteirado de saberes técnicos nesse conhecimento científico,
correspondente da Revista Planeta.
Mas, o que de mais belo viram, foram as cabras do velhote
teimoso de morrer: como se o soubessem ido para sempre, deitadas na verde
grama macia do quintal traseiro da casa, postaram-se silentes como se ornando
alguma espécie invisível de presépio itinerante que os humanos comuns e
finitos não tinham reconhecido, ou, sequer entendimento. Estavam todas como
se num reverenciar inexplicavelmente puro à alguém que passara por ali. E que
se ligara em elo final com o falecido.
Só estenderam, finalmente, que a Visita era o próprio Perdoador -
de um ser humano tão feito à imagem e semelhança do Criador de Todas as
Coisas - quando viram que os lírios todos - estavam como se dobrados em
feitio de oração - lindamente, com graceza os grandes caules tenros curvados,
como se arredondamente ajoelhados ao passar do filho de Deus.

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2)-Reparando bem no velho, viram que ele tinha finalmente descansado em
remanso de paz, tal a ternura que mantinha nos estilhaçados olhos como se
empacados num ver terreal. Na beira da janela, os canários todos iam e vinham
como se aloprados, em trinados nunca dantes ouvidos. As cabras também
pareciam assustadas, e, muito tempo depois notaram que o lugar por onde o
Visitante entrara, parecia ter sido lixado por alguma energia diferente. Seria
radioativa?. Os próprios lírios estavam secos como se meros talos de uma
esquisita savana qualquer. No entanto, as mãos dos velhos juntas e frias,
estavam em feitio de oração (ou agradecimento), o que certamente o colocara
em descanso tão esperado e merecido, no paraíso celeste. Na missa de Sétimo
Dia, na Missa de um mês do passamento, na Missa de um ano da morte dele e
assim, sucessivamente, a cada missa anual, a igreja Nossa Senhora da
Conceição de Itararé - que ele ajudara a construir e que a chamava de
"Catedral de Lírios" - sempre há um estranho e inexplicável cheiro delicioso
de incenso e mirra.

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03)-Quando foram dar um derradeiro banho no cadáver do velho, prepará-lo
para os lamentos do velório no morgue e o tão esperado enterro no Cemitério
da Saudade de Itararé, foi que viram claro, em alto relevo nas mãos do
falecido, a definitiva prova de quem era o Visitante que viera informar ao
querido patriarca que o único deslize dele, além de ter sido julgado na terra,
também tinha sido perdoado no céu. As mãos cheirosas do velho - como se
lavadas por delicioso incenso desconhecido - mostravam bem visíveis as
marca dos afetuosos cumprimentos angelicais de quem o salvara de um tétrico
"não morrer": Tinha, o Tião Rosa, na palma de cada mão fina, as firmes e
evidentes marcas dos sinais dos cravos.
(FIM)

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BRIGA
A prova de Antropologia, de final de ano, acabou mais cedo do
que pensara a duração; tinha sido até relativamente fácil responder
rapidamente a todas as dozes questões, concluiu Doralice, depois de sair do
campus da faculdade de Geografia, ali no bairro de Pinheiros, zona oeste de
São Paulo. Olhou de cima da janela principal do terraço da escola, para ver se
os colegas de classe ainda estavam empatados no saguão da Secretaria, lá
embaixo. No mesmo momento, captou a cantoria frenética e desenfreada vindo
da travessa de uma ruela adjacente, no barzinho universitário ao lado do
prédio em que terminava, à noite, o último ano do curso de terceiro grau para
ser Professora de ensino básico.
Conferiu pelas vozes amontoadas de fervor e álcool, que eram os
amigos alvoroçados. Concomitantemente verificou que eram quase dez horas
daquela noite de novembro que fazia calor e havia um noturno céu azul-anil
bonito. Como o curso regularmente ia das sete às onze, concluiu que teria um
tempinho para bater um rápido bate-papo com os parceiros de estudos; talvez
até tomasse dois chopinhos ou apreciasse duzia e meia de palavras alegres em
meio a deliciosos petiscos. Depois lembrou-se que o marido ciumento a
esperava, como sempre o fizera nos últimos cinco anos, num ponto de ônibus
antes da esquina de casa, logo depois do Largo da Batata, antes da Via
Marginal que rodeava o poluído, fétido e podre rio Pinheiros. O esposo Pedro
Frederico era apaixonado ao extremo, ainda que algo possessivo, apesar de,
no fundo, ser um marido carinhoso, fiel, de caráter, trabalhador e romântico.
Doralice não gostava era do tédio que as vezes tomava a rotineira relação
estável que rondava o cotidiano do seu casamento, quando, propositalmente,
montava um costumeiro teatrinho, fazendo tipo, quase jogo de cena sensual,
visando deixar o belo marido enciumado, o que mais a deixava feliz e o
próprio casamento algo mais "caliente" e apimentado desse jeito, dessa
maneira, num estilo que repetia com sucesso e talento quase maquiavélico.
Desceu e viu-se contente com os salgadinhos caprichados, a
conversa fiada em meio a um ensaio de tocadores de chorinho instrumental em
bandolins, mais as variadas cervejas estupidamente geladas. Um grupo da sala
de Pedagogia improvisava um arremedo de afinamento do violão para uma
bossa-nova em suave estilo, quando a noite de verão lá fora tinha uma beleza
de lua cheia e pingentes de luz pontilhados no toldo celeste do longe. Enquanto

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conversava displicente e a vontade, perdeu-se no rocambole dos papos
furados, e, quando olhou sem querer para o fino relógio foi que viu ter passado
das onze e meia. Apurou o relho da pressa. O marido deveria estar num misto
de desesperado e furioso, "fulo da vida" como diziam em Itararé, terra onde
ela fora fazer uma excursão de ginásio e o conhecera estagiário em serviço
público numa área de turismo. Relembrou que quando ele passava de nervoso,
incontrolável, ficava uma vara, uma fera. E, com isso, entocava-se no
escritório a beber e escrever o que chamava de ficção-angústia, ficando dias
de-mal, beiçudo, enciumado, não aceitando explicação rala e rasa, restando-se
duro de lidar. Ela tinha que se virar, rebolar para reconquistá-lo
pacienciosamente, aos poucos, desarmá-lo; mostrar competência e grandeza
que só há na flor-fêmea com talento. Rapidamente e, aos trancos, dirigiu-se até
a parada de ônibus e logo pegou o carro da linha que servia, descendo o
veículo quase vazio sentido de onde morava. Pensou que ao desembarcar perto
de casa teria que caminhar rápido, com medo, tendo de andar num lugar pouco
iluminado entre três quarteirões, caso ele já não mais estivesse lá a lhe
esperar, paciencioso que isso realmente não era. Estava desapontada com o
que fizera de boba tolice, também preocupada com a reação daquele com
quem, esporadicamente brigava para fazer queimar a lenha morna do conviver
simplório, visando ganhar mais expressões de estima requintada, como se as
tais briguinhas fossem só mais uma espécie de dínamo que moviam com calor
e acabavam por excitar o relacionamento, feito um combustível que fazia o
parceiro mostrar ainda mais carinho explícito, confessar a enorme paixão com
palavras de apuro, demonstrar estima e uma espécie de loucura incorrigível
por ela.
Deu sinal e o motorista de traços nordestino brecou abrupto.
Desceu no ponto de costume e apressou os passos. Estava nervosa. Era tarde.
Não devia ter ficado no festim universitário daquela sexta-feira, arrependeu-se
amargamente. Andou perto de cinqüenta metros da alameda e garrou a travessa
que dava na sua rua, em cuja esquina o marido marcando presença a sondava
chegar todas as noites, feito bicho encruado, de tocaia. De longe viu-o,
consultando o relógio que ela lhe dera no aniversário, em agosto, mês de
cachorro louco como ele mesmo dizia quando de bom-humor ou em festanças
com parentes e amigos. Ainda andando depressa, sondou-o encolhido num
capote escuro pois a noite começara a compor-se de um vento frio, começando
o tempo a ficar algo úmido, coisa própria da cidade. Andou mais uns passos,
sempre na tentativa de perceber em Pedro Frederico algum sinal de teimosia,

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de impaciência. Alguma preocupação latente que ela pudesse declinar, algum
feitio de comportamento que passasse de nervoso para rude ou mesmo bronca
imedida. Foi chegando com os livros sobre as mãos crispadas, mostrando nos
dedos os vários anéis que ele lhe dera ao longo de três anos de noivado e
quase cinco de casamento, ainda sem programarem filhos. Pensou em pedir
desculpas pelo atraso, se preparando precavidamente para ouvir um monte, um
sermão raivoso. Quando estava no farol, viu que ele a fitou incisivo como
nunca o fizera. Estranhou aquilo. Era novo nele aquele demorado olhar
lânguido, pertubador. Ela não respondeu, pois fazia-se recatada e humilde.
Nem tampouco notou num primeiro momento, qualquer mudança de hábito,
diferença ou frieza no cotidiano reencontro costumeiro.
Atravessou a esquina silenciosa e dirigiu-se até ele. Que apenas
murmurou suave e curto, em tom polido de voz, que ela estava muito atrasada,
que estava preocupadíssimo; que tinha demorado além do previsto, do
costumeiro. Estava, ainda assim, beiçudo, tenso, frio, ensimesmado, ela
captou, esperta. Cumprimentou-o, alertada. Não teve coragem e moral para
pedir desculpas, sequer para oferecer o biquinho para o costumeiro rápido
beijo de toda noite no mesmo lugar. Seguiram silentes lado a lado, como o
fizeram por quase cinco anos. Só que, sem se abraçarem, como de vezes
anteriores, apaixonados que eram. Nas outras ocasiões, um deles puxava o fio
da meada; comentava alguma coisa alegre do dia de trabalho, feliz e
entusiasmado. Ou ele inventava uma lembrança de infância de Itararé, quando
ia esperar as seis imãs no ponto, isso quando não tinha um trocadilho novo,
uma piada velha, um causo de rascunho, ou microconto de realismo fantástico
recém-escrito. Ali nem tinha uma boa-nova qualquer, naquelas imprivisíveis
circunstâncias. Doralice ocasionalmente estava errada e o silêncio ao extremo
de Pedro Frederico era até aceitável. Ela entendia. Bem melhor que uma
marotice, um sermão de ciumento, ou um pito severo de quem era
possessivamente apaixonado, apesar de cativo do amor que os unia.
Pedro Frederico, prestativo e silente, abriu a porta do prédio onde
moravam. Depois destravou a grade de segurança do corredor. Sempre
forçando solicitude, silencioso e remontando gentileza, deschaveou a porta do
apartamento que ficava no primeiro andar do prédio e Doralice entrou
temerosa de ter ido longe demais, de ter demorado quase uma hora a mais que
o costume. Guardou rapidamente a bolsa, os cadernos e os livros todos na
mesinha da sala mesmo. Recompôs-se apressadamente e dirigiu-se até a
cozinha, preparar a janta para ambos comerem e então ela poder tentar, com

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um bom prato delicioso, um flanco para ocasional recuperação de diálogo
sadio. Também (depois do jantar, que ela iria caprichar) quando se
recolhessem na intimidade do amor, ela poderia até explicar o ocorrido, pedir
perdão se fosse o caso. Então ele se daria de acuado por vencido, diria outra
vez que a amava, e a levaria aos céus no prazer que tanto lhe proporcionava
como marido prestativo e pontual na sua condição de macho e sobremodo
viril, quase que ainda em maravilhosa lua de mel.
Doralice esquentou o arroz, acrescentou ervilha e queijo provolone
ralado. Misturou ao feijão, alho, cebola, pimenta-do-reino, tempero e farinha
de milho. Ele iria adorar a surpresa feita com recatado mimo. Fritou ovos com
bacon. Depois grelhou um meio frango no micro-ondas importado e montou,
com ternura feminina, os dois pratos prontos. Pensou em tomar um copo de
vinho com o homem que era a razão de sua vida, como fazia toda noite, quando
o achava romântico, carente e sensual. Abriu a garrafa bojuda e serviu-se num
cristal fino. Reinou de oferecer o primeiro gole ao marido, numa tentativa de,
fazendo gracioso charme, murchá-lo de qualquer destempero. No entanto,
surpreendeu-se. Viu a saleta toda deserta, a suíte de casal às escuras, o restante
do lar todo com as luzes apagadas. Estranhou. Apressou-se em ir até o quarto e
surpreendeu-se: Pedro Frederico estava sob os cobertores e a colcha de
retalhos que a mãe lhe dera há uns quatro invernos atrás. Zangou-se. Mal
segurou um ostensivo gesto abrupto, entre um misto de mágoa e de desencanto.
Murmurou qualquer coisa de dissimulação, de raiva, de desapontamento.
Merecia a desfeita, pensou. Castigo. Voltou e atirou o conteúdo do copo cheio
de vinho frisante na pia, guardou os dois pratos feitos, da janta, na geladeira.
Secou por dentro, mirrou o tesão. Perdeu totalmente o apetite. Depois tomou
uma ducha rápida e foi se deitar sem fazer alarde de presença, pois o marido
parecia dormir tão tranqüilo que nem fazia o barulho comum do respirar
convencional. Teve dó dele. Quase beijou-o com candura. Deitou-se
emburrada e em silêncio, crendo que era o melhor a fazer; que era o que
merecia por provocar o marido, fazendo-o sofrer, aprontando clima
destemperado para mais uma boba briga montada. Passariam uma noite irados
um com outro, não haveria trégua para o amor; sentir-se-ia sozinha no seu
egoísmo provocado, não teria um delicioso prazer e ainda ele poderia demorar
alguns dias de cara amarrada. Desfeito da pose de si; inseguro no jeito
sensível que era. Não era exatamente aquilo que pretendia para aquela noite
em que estava fértil. Queria porque queria fazê-lo aceitar a idéia de

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produzirem um filho. Não seria naquele momento de uma nova tentativa.
Aprendeu a lição e levou o recolhimento consigo, chateada que estava.
Acordou às nove horas da manhã seguinte, quando soou o alarme
do relógio sempre preparado pelo esposo que saía antes. Ele despertava
regularmente às seis. Lecionava Ontologia numa Faculdade, depois de deixar o
relógio mais alto para que ela não perdesse a hora no Escritório. Pedro
Frederico tinha três empregos: de manhã numa faculdade. À tarde dava
assessoria numa Revista Ecológica, e, até as nove e meia da noite fazia bico de
professor de história numa escola pública que ficava perto da residência.
Vinha sempre cedo para casa. Depois de alguns afazeres costumeiros no lar,
tomar uns sucos, assistir filmes, escrever prosa e verso no computador, saía
religiosamente a esperá-la regularmente às vinte e três horas da noite, visando
cuidá-la, preservá-la; sabê-la segura e bem.
Doralice levantou-se, banhou-se, tomou seu desjejum simples, um
iogurte natural com rosquinhas de coco, e, andando uns trezentos metros, tomou
o ônibus para o trabalho no Escritório de um hospital particular perto da
Avenida Paulista, onde era Secretária de um Diretor Clínico. Lá chegando
abriu a porta e, após apertar o botão da secretária eletrônica, foi cerrar as
venezianas que, fechadas, davam tom escuro ao local. Era costume fazer isso
todo dia, enquanto prestava atenção para ver se havia algum recado urgente
para o Dr. Cristóvão, o titular da clínica e especialista do coração. Aturdida e
surpresa estranhou a mensagem que tinha sido deixada na secretária
eletrônica: "-Dona Doralice? Informe se correu bem, ontem, a operação de
emergência do Prof. Pedro Frederico. Aqui é da escola onde ele trabalha à
noite. É a diretora Dorothy. Dê-nos um retorno. Abraços. Tiau"
Doralice quase ficou louca. Operação? Que recado
estranhíssimo era aquele? O peito fraquejou um instinto triste e amargo.
Sentença? Ligou para a Faculdade onde o marido tinha docência de manhã e
ficou sabendo: ele tinha faltado pela primeira vez em quase três anos. Ligou
para a Dorothy e então foi informada: Tinha havido uma briga no portão
central da escola na noite anterior, entre manjados traficantes do bairro e
alunos com dívidas de drogas. Pedro Frederico, ao querer apartar o
intrometido entrevero, tinha levado incidentalmente um tiro na barriga.
Pensaram até em ligar para ela, quando a demorada ambulância do hospital
público finalmente chegou e ele era cuidado por colegas e funcionários
apavorados.

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Mas o professor disse que não era nada de grave; que tinha
sido só um tiro de raspão; que o atendimento seria rápido no pronto socorro
perto. Alegou que era forte, não queria dar trabalho e nem susto em casa, que
tudo correria bem e que ele mesmo, de qualquer maneira, tentaria fazer contato
com a esposa adorada. Não queria deixá-la preocupada em dia difícil de prova
de final de ano.
Doralice, aturdida e incrédula, apavoradamente ligou para o
Pronto Socorro.
FINAIS OPCIONAIS
Final Realismo Fantástico
Final Trágico
Final Feliz

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01)-Informaram que o Professor Pedro Frederico tinha chegado no Hospital do
Servidor Público às oito horas da noite anterior, com hemorragia grave,
sangrando sem parar. A bala de um revólver calibre 22, tinha atingido orgãos
vitais e o coitado tinha sangrado muito. Depois de uma apressada intervenção
com delicada cirurgia difícil, depois de ter recebido transfusão de sangue,
tinha sido internado na UTI para casos graves. Ali, não agüentando o tranco da
dor que lhe provocara convulsões e disrritimias cerebrais, morrera em
devaneio exatamente às dez da noite, delirando feito um louco, alegando que
tinha que buscar alguém, nalgum lugar, por algum motivo. Doralice então se
desesperou: Quem a tinha ido esperar no ponto na noite em que o marido já
estava morto? Quem a tinha evitado tocar? Pedro Frederico murmurara apenas
algumas palavras desconexas, ou tudo tinha sido só mera ilusão, ocasional
impressão da sua consciência pesada? Bem que estranhou o pequeno fio de
voz tênue dele, que não era de costume. Tudo era esquisito mesmo, considerou.
Ele era bronco. Bem que não entendeu ele ter sido tão silente e frio, nem um
simples gesto rude de ciúme ou paixão doentia, como deveria ser por praxe.
Com quem ela tinha dormido? Como podia ter perdido a chance de, pelo
menos abraçá-lo, de acariciá-lo, de sabê-lo, de trocar umas palavras de
carinho e ternura? Como podia ter deixado de amá-lo pela última vez?

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02)-Foi informada que, na verdade o Prof. Pedro Frederico tinha alguma razão.
Tinha sido apenas um tiro de raspão, nada além disso, apenas pegando uma
pequena ramificação de veias o que tinha provocado uma hemorragia que fora
controlada a tempo. Depois fora para casa perto das dez da noite. Ficou mais
tranquila. Depois, à tarde do mesmo dia, Doralice ligou para a Secretária do
Escritório onde o marido prestava serviços e foi informado que, como de
manhã ele se sentira algo tonto e com pequena febre; ainda azedo com a mulher
sem juízo que o provocara, resolvera passar no médico particular do convênio,
com quem teria ido almoçar. Informou ainda a volupiosa e interesseira
Secretária Dagmar, sem breque na língua, com belos quadris e bem torneadas
pernas, que o ranzinza chefe confidenciara abertamente a ela que, o Professor
Pedro Frederico estava cansado da mulher enjoada fazendo tipo, usando e
abusando do amor marital dele. Já não agüentava mais. Iria romper com o
passado sofredor, dar um jeito naquilo tudo, ir em buscas de outros braços
serenos, outros remansos. E teria pedido ao advogado Jurandir da área
contenciosa da empresa para que, finalmente rascunhasse o fatal pedido de
divórcio litigioso, pois que iria dar entrada em juízo em poucos dias, depois
de abandonar para sempre o recato do tumultuado lar.

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03)-No Pronto Socorro, a nervosa Doralice foi informada que o marido tinha
sido bem cuidado, que tudo correra bem, por isso ele tinha sido dispensando
perto das dez da noite anterior. E ainda passaram que o Prof. Frederico estava
reavaliando a vida, os trabalhos, a correria, dizendo repetidas vezes que tudo
aquilo não valia um tostão sem saúde. Mais aliviada, Doralice ligou para o
Escritório onde o marido prestava serviços. Foi informado pela sra. Dagmar,
Secretária dele e sua prima em segundo grau, também oriunda de Itararé, que o
marido estava cheio de boas intenções com a dedicada esposa "caliente". E
mandara a funcionária comprar uma dúzia de rosas amarelas. Até marcara um
jantar no restaurante mais fino da cidade, pois passaria numa casa de jóias
alemãs. Depois iria, feliz, reservar passagens para uma segunda viagem
marítima de núpcias pelos verdes mares das águas serenas do Caribe.
(FIM)

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Estação Saudade
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Havia muito tempo que Igor José Damião estava ali na
vazia plataforma da estação ferroviária de Itararé e, mesmo com a passagem
esporádica de alguns trens bagageiros e atrasados trens passageiros, os
esporádicos viajantes que desciam ou embarcavam eram tão poucos e
mirrados, que certamente ninguém pararia num dia frio e úmido daqueles, para
dar-se ao luxo de engraxar sapatos com um piá fracote e beiçudo, feito um
pequeno fantasma torto numa estação vazia, chamada pelos costumeiros
viajantes do ramal ferroviário de Estação Saudade.
Igor fazia ponto ali há anos. Volta e meia ia para casa periférica e
pobre, com uns míseros cobres no bolso da surrada meia-calça rancheira de
brim crú mal-cerzida e gasta de tanta lavagem com sabão de cinzas. O pai tinha
morrido de tuberculose provocada por doença-de-chagas incuidada, depois da
soma com um acidente para piorar o assunto de saúde. A mãe fazia
encapotados de frango que vendia nos bares principais de Itararé, além de
lavar roupa pra fora, servindo a famílias da classe dinheiruda da sociedade.
Malemal se fincara em pé, Igor José resolveu de se empatar no trabalho. A
mãe conseguiu na prefeitura a doação da modesta caixa verde de engraxar
sapatos. Igor gostava muito do ramal-ferroviário, da malha de trilhos, da
"Estação Saudade de Itararé", que ali ficava de cedo até a tarde, mal comendo
uns bolinhos de frango como precário e rápido almoço improvisado. Pelo
menos uns tostões pro leite, pro pão sovado chamado popularmente de "pão
bundinha" e para uma mistura santa como mortadela (ou linguiça de porco) ele
conseguia, no sentido de ajudar em casa e dar apoio à Mãe Dona Candoca
Damião, residente numa choupana humilde da Vila Pagã, perto da gruta das
Andorinhas, beira do pedrento e espumoso rio Itararé.
Eram perto de quatro horas da tarde, quando parou o comboio de
trem chamado "Misto" da Rede Ferroviária Federal Santa Catarina, vindo do
Paraná, lados de Curitiba, sentido a São Paulo. Desceram uns capiaus arigós
carregando cachos de banana-caturra e pencas de galinhas-de-angola, uma
posuda madame que logo foi recebida por familiares bem vestidos. Mal o trem
apitou demorado avisando da saída, depois do acertado engate de dois vagões
de feijão-rosa saindo de Itararé com destino ao porto de Santos, desceu um
exótico tipo estranho que Igor mediu como se fosse um personagem de

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histórias em quadrinhos que adorava. Parecia o próprio Sombra, exagerou,
meio assustado. Botou a caixa de engraxar sapatos no ombro direito e,
capengando curvado por causa do que a paralisia infantil lhe causara, e correu
até o estranho que demorara a desembarcar, parecendo que precavido a sondar
as insofrências manchadas da velha Estação.
-Vai graxa, Doutor?
O tipo, alto, claro, na casa dos seus cinqüenta anos, bem
vestido de capote solto e pele de polaco, olhos castanhos em formato de
amêndoas, sorriu curto mostrando os dentes bem feitos, agradeceu simpático,
fazendo um gesto largo de educada recusa. Mas entabulou rápida conversa:
-Obrigado, filho. Você pode me ajudar num favor? -
Perguntou e sondou as acontecências triviais do derredor. Como se ainda
desconfiado.
-Claro, seu moço, disse Igor abrindo um sorriso que parecia
entrar na alma das coisas, das pessoas, do ambiente triste em que se restava a
estação ferroviária naquele frio dia imprestável.
-Quero que você me indique um bom lugar para comer bem,
uma decente pensão familiar para me alojar. Prometo que um bendito dia futuro
engraxo os sapatos, se você for bondoso e me fizer essas referências.
Capriche.
Num teco de minuto, Igor José Damião indicou a bodega do
Carlito Rosa que fazia fartas marmitas caseiras gostosas, em seguida
referendou de elogios rasgados a aconchegante Pensão Raio de Sol da Dona
Lilica, além de se comprometer a ajudar o estranho a levar a mala de mão,
feito uma guaiaca-frasqueira que trazia de lado, apegada abaixo da cintura,
adjunto a um ondulado que quase revelava arma de grosso calibre.
-Obrigado, gurí, disse o estranho. E deu uma nota alta que
devia valer pelo menos umas dez engraxadas. Igor não acreditou. Era a
primeira vez em meses que recebia uma caixinha. E essa era bem gorda. Os
viajantes ou eram rápidos demais, ou caínhos ao extremo.
-Muito obrigado, sr. Deus-lhe-pague. Deixe que eu o ajudo a
chamar um táxi então.
-Pode deixar, filho. Pego aquele velho oldsmobile ali na
esquina mesmo. E nem precisa levar minha bolsa. São só documentos. As
outras malas com a minhas roupas chegarão amanhã e me serão entregues no
local que você indicou. A propósito, filho, vá amanhã às onze da manhã me
prestar um favor nessa tal pensão. Gostei de seu jeito e você me poderá, além

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de engraxar minhas botas altas, ser de grande valia, acredito eu. Vamos ver no
que vai dar essa minha missão aqui.
Igor não dormiu direito aquela noite, tal a expectativa
juvenil. A mãe, Dona Candoca, nem acreditou no volume da gorjeta mas
agradeceu a Deus. Quando o dia seguinte arrebentou a dourada aba larga do
sol, ela asseou o melhor que pode o filho único, pôs-lhe uma roupa caprichada
e o despachou para a Pensão. Pelo menos Deus tinha posto uma pessoa de bom
coração a ajudar o rebento querido. Ficou rezando que o menino se saísse bem
na empreita que o tal doutor haveria de querer dele, pois o piá era prestativo e
jeitoso.
Igor andou capengando até a Pensão, onde era conhecido,
pois ali, às vezes, ia aos domingos, engraxar os sapatos dos caixeiros-
viajantes que ficavam ouvindo charleston num rádio roufenho que transmitia
uma emissora de São Sebastião do Rio de Janeiro, quando algum tipo bondoso
lhe pagava o almoço, ou a dona da pensão, Dona Lilica, lhe fazia um sortido
farto e com capricho na mistura da gororoba. Lá chegando foi inteirado por um
piazote curioso, da casa, que o esperava para encaminhá-lo direto, avisando
que o Dr. Saulo Todeschinni parecia que viera do Rio Grande do Sul, e que o
estava esperando já ansioso e reclamão. Entrou na pensão, ganhou o corredor e
foi se encontrar com o freguês especial que, numa confortável cadeira de
balanços, consultando uma pasta com papéis esquisitos, pitava um cigarrete
bem acomodado numa banqueta da varanda larga, ao lado do ajardinado
bosque da pensão caseira, limpa e cativante, e de um gato de raça angorá bem
gordo e arredio.
-Bom dia menino. Pensei que você tinha me esquecido.
-Desculpe, doutor. Mas não posso forçar muito o passo, o sr. sabe,
a perna torta. Vamos engraxar agora?
-Espere um pouco, filho. Preciso lhe fazer umas perguntas ainda.
Se aprume, cate aí essa cadeira, se abanque.
-Pois não? Estou as ordens. Minha mãe mandou agradecer a
gorjeta. Ela ficou muito feliz. Deus que abençoe.
-Sei, sei. Procurei me informar sobre você. Sei da lida de sua
genitora. Já lhe falaram quem eu sou?
-Sim, sor. Conheci o Dr. Getúlio Vargas quando ele passou aqui
em Itararé, mais ou menos oito meses atrás. Passei a ver com outros olhos a
gaúchada toda. Ele até deu-me um boné militar de presente. Fui com a feição

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dele. Achei que ele é boa pessoa. Soube que o sr. é da tropa dele. O quê é que
o sr. poderia precisar de mim.
-O Presidente quer nomear um Interventor especial para Itararé,
quer que eu faça umas mudanças na cidade, altere algumas coisas. Acho que
você poderia me ajudar.
-De que maneira eu posso lhe ser útil, doutor. ?
-Quero saber da vidinha rotineira, do cotidiano costumeiro da
cidade, quem é quem, também saber o nome de algumas ruas, se o atual
prefeito é flor-que-se-cheire, coisa assim. O rami-rami trivial.
-O sr. quer que eu vá buscar os calçados no quarto, para ir
engraxando, enquanto faz as perguntas?
-Por enquanto não é preciso, filho. Esse meu par de chinelos feito
lá em minha estância nos pagos sulistas por ora já me é de serventia. Passei um
pano molhado no par de botas, coloquei para secar na janela lateral. Amanhã
você engraxa. Mas vamos às questões. Diga-me lá: -O Prefeito da cidade é boa
gente, de confiança, boa bisca, sério, empreendedor?
-Minha mãe diz que ele faz o que pode, sabe como é, a carestia, a
revolução. Agora é que a cidade pegou o jeito, pessoas fugitivas voltaram,
alguns donos de léguas de latifúndios estão avaliando a produção. Essa
revolução gaúcha espantou compradores de terras, caixeiros de vendas
sumiram, os políticos pensaram mais em si e na sobrevivência tranqüila dos
familiares do que na cidade ou região toda.
-Você gosta de sua aldeia?
-Demais, dr. Saulo. Minha mãe tem uma vidinha corrida mas,
graças a Deus e à Nossa Senhora de Lourdes tem saúde. Eu ajudo como posso.
Vamos levando a toada da lida.
-Você não estuda?
-Ché! De que jeito? Malemal aprendi algumas palavras com a
Comadre de minha mãe, e também minha Madrinha, Dona Ida Ítala, para quem
mamãe lava as roupas pra fora, e que me deu por anos umas aulas de favor e
que, me ensinou até a Cartilha Ilustrada, e volta e meia dá-me presente, algum
brinquedo, gibís velhos, algumas peças de roupas usadas.
-Então você sabe ler, somar, contar, escrever.
-Dá pro gasto. Leio bem até. Mamãe fala que sou muito sabido. A
Madrinha Ida Ítala diz que eu tenho tino pras coisas, por isso vou levando meu
calvário, fazendo o possível.

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-Para começar, guri, dê umas sondadas sobre como opera o
Prefeito, como ele age, como ele ajeita as coisas. Compreende o que eu quero
dizer? Dá para levantar isso para mim, sem ninguém pôr vezo de acentuado
desconfio?
-Como assim, exatamente? O sr. quer que eu vigie ele?
-Sim, é isso. Siga o rastro dele. Grude nele. E ouça o que dizem
dele nos banhos públicos, nos salões de barbeiros, nas reuniões para farras em
bodegas, nas ruas. Você me entende?
-Mas para quê o sr. deseja saber da atuação ou intimidades do Dr.
Florêncio Ferreira, o Prefeito?
-Para saber se ele é honesto, de confiança.
-Só isso, então?
-Depois virão outros nomes. Também quero trocar o nome das ruas
principais aqui de Itararé, mudar algumas coisa. Colocar umas homenagens a
revolucionários maragatos de Farroupilha, personalidades sulistas, amigos
meus.
-Posso ir agora, começar a perambular aqui e ali, como se um
engraxate curioso a sondar essa gente dinheiruda?
-Você vai longe, menino. Almoce por minha conta, tome uma
gasosa e venha daqui a cinco dias, uma hora mais cedo, engraxar os sapatos.
Vou dar uma lista do que mais quero de você. Boa sorte. Vá com Deus!
-Vou pedir para a Dona Lilica ajeitar o sortido para que eu leve
para casa. Posso repartir com mamãe que anda meio com bronquite asmática.
Tétrodia dr. Saulo.
O menino engraxate saiu e o dr. Saulo ficou com ternura toda
especial por ele. Lembrou-se dos filhos distantes, morando com a vó em São
Borja, extremos do sul, pois a esposa Lindaura o largara para fugir para o
Uruguai com um arigó matuto qualquer. Pensara em ir atrás dos traidores,
matar o casal, mas em seguida arrebentara a revolução. Deixara os três piás
com a velha mãe viúva e ficara arrumando papéis para os Assessores de
Vargas, até que lhe caíra aquela missão de emergência: sondar Itararé, cidade
estratégica de divisa, avaliar autoridades, trocar umas, matar outras se preciso
fosse a bem da ordem geral, podendo substituir qualquer tipo em qualquer
função. Saulo achou melhor não se identificar totalmente e de sopetão,
procurando valer-se de um menino simples, rueiro mas bem inteligente e
esperto, para, a partir da ótica dele promover os acertos, rupturas e

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compreender a sina de divisa que Itararé carregava na história desde antigas
revoluções mal consumadas no processo histórico brasileiro.
Tomou um chimarrão quente e forte, e ficou até tarde lendo Karl
Marx em francês sob a luz de um amelado lampião a querosene a somar à
precária luz elétrica. Poucas casas na cidade pequena tinham ligacão de luz e
ainda assim muito fraca, horrível; estragava as vistas, dava olheiras profundas,
às vezes até pifando nas horas de serventia.
**
No outro dia, Igor José Damião já tinha algumas informações. Ao
invés de seguir o costume rotineiro do cotidiano e ficar no seu ponto fixo da
Estação Saudade de Itararé, garrou as arborizadas ruas batidas de terra branca
da cidade. Capengando, sondou por horas, parando depois na porta do Salão
do Lazico Corrêa, um barbeiro de renome na cidade e região, porque tinha no
ponto um sanfoneiro que, entre um causo e outro, hilário, depois da fuzarca da
converseira, espandongava no fole do acordeom um xote, uma guarânia ou um
samba-canção, para deleite dos fregueses, dos passantes e principalmente dos
turistas e mesmo gurís porqueiras de curiosos que ficavam pendurados no
derredor, assistenciando o desmanche do forfé. Nesse local ouviu coisas.
Depois no Armazém Carneiro que ficava na rua das Flores. Ali assentou com o
consentimento do Seu Antonico, o dono, até conseguindo alguns fregueses
vaidosos. Também ouviu coisarada. Assim, prudentemente, varou a cidade nos
dias que se seguiram.
O que impressionou Igor Damião foram as duas vertentes das falas.
Chegava um tipo na barbearia e reclamava da carestia, da falta de serviço,
chiava barbaridade, botava a boca no trombone a falar mal do Prefeito
Florêncio Ferreira, com o qual o seu Lazico Corrêa não concordava muito,
enquanto a tesoura lépida ia e vinha na gadeia do falastrão. Depois, entrava
outro tipo, bem apessoado e louvava a Deus pelo fato do Prefeito ter bom
senso e preferir por fazer um armistício com os valentes Revolucionários. No
armazém de secos e molhados do seu Carneiro a mesma bulha: um freguês
deitava falatório sobre arranjos ruins do Prefeito de Itararé, com o qual o dono
do empório concordava de presto a entabular adjetivos depreciativos pois lhe
tinha sido adversário em campanha eleitoral anterior. Era do Partido
Constitucionalista. Mas em seguida vinha um casal buscar a compra fiada do
mês, e falava com graça e tino do Prefeito, dizendo de um mimo aqui, um
amparo ali; um bem sucedido cascalhar de rua, um remédio arranjado na

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capital, uma internação. Igor ficou de butuca, com a pulga atrás da orelha.
Afinal, sondou, o Prefeito era um coisa à toa ou outra, de verve, exatamente?
Pior: o que deveria passar ao seu gaúcho freguês, bom de papo, de pose e de
coração? De início achou que deveria contar como ouvira e pronto, os dois
lados. Em mais três dias, ouvindo a fala comum do povo, a conversa fiada dos
botecos, os fuxicos de esquinas de ruas, viu que a boataria pendeu a favor do
Seu Florêncio Prefeito. E assim achou por bem e honra itarareense de só
revelar esse lado. Não contar que o Seu Florêncio tinha, diziam as más línguas,
num ouvi-dizer meio de origem anônima, uma zinha, biscate, coisa-à-toa na
zona de tolerância da cidade, local que na verdade não era mais que umas
poucas casas de madeira de segunda no alto da Vila Osório. Nem deveria
contar que o Prefeito tinha amigo secreto no jornal da cidade a lhe fazer
suspeitos elogios rasgados por trinta moedas, nem que fazia conchavo de
camuflo com um vereador de oposição o que lhe dava maioria na Câmara
Municipal. O que de correto ouvira era melhor. Ademais, deduziu sabiamente,
depois o estranho iria embora e não poderia levar coisa ruim ou triste de
Itararé, nem maledicência ou causo que só podia ser fofoca, má intenção ou
arremate de faladeira venenosa de adversário enrustido ou com praga doente
na língua de cusarruim.
Quando voltou a se encontrar com o Dr. Saulo, engraxou-lhe os
sapatos, passando as informações enquanto isso. O homem anotava tudo num
pequeno livro que mais parecia de contabilidade, livro-caixa. Era uma espécie
de diário de missão.-Pois ninguém fala mal do homem, então, Igor? Ele é bom
tudo isso inteiro? perguntou escondendo a desconfiança, o gaúcho de lenço
vermelho no pescoço grosso de descendente de carcamano, enquanto chupava
da bomba o mate amargo e quente do suado porongo com musgo surrado de
tanto uso da freguesia viajante.
-Bem, tem uns réis de coisas ruins, mas que nem valem o saber
das ruas mesmo, explicou o guri assustado com o risco de que o homem lhe
tirasse a empreita lucrativa.
-Pois me conte tudinho, filho. Deixe que julgar ou não, medir ou
acreditar é aqui comigo. Sou muito viajado. Cheiro encrenca longe. Em Itararé
não seria diferente nesses tempos.
Igor não teve jeito. Ficou ali umas quatro horas, filou a bóia, levou
uma caixinha e ainda ficou na dívida acordada. Dali a outros três dias, deveria
voltar com o nome das principais ruas de Itararé, contando mal-e-mal quem era
o homenageado. Igor, na verdade, sabia a história de cada um, por ouvir dizer

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mesmo, porque a madrinha fofoqueira lhe contara; por ser parente de
conhecidos ou por ele próprio ter tido a sorte de saber o honrado com nome de
rua em homenagem póstuma ali em Itararé. Alguma dúvida que teve, a bondosa
madrinha Ida Ítala ajudou, curiosa em saber porque o afilhado estava com
intenção daquela sabença nos miolos. Ele deu uma desculpa qualquer, mas
ganhou incólume as informações com os ricos detalhes que precisava. Valera a
prosa esticada.
Dali a três dias passou a informação ao dr. Saulo. Mas,
cândido, pediu: -Gostaria que o nome da rua Gaetano Giácomo Andreluicchi
não mudasse não, quase suplicou comovido. Tinha emoção nos olhos cândidos
-Por quê menino? interessou-se o dr. Saulo palitando os
dentes alvos, pois tinha feito um lanche com pão caseiro e chouriço de sangue
na cozinha da pousada.
-É que o Dr. Gaetano foi de muita valentia uma vez, segundo
minha mãe. Papai foi assaltado perto da divisa do rio Itararé, e ele, caçando
codornas silvestres e tatús-canastras por perto, ao invés de fugir a galope, foi
logo sacando de uma garrucha boa de mira e acabou atropelando pra longe os
meliantes, salvando meu velho. Depois ficaram amigos. Arrumou emprego de
tropeiro pro meu finado velho, tratando-o com respeito e carinho. Quando
papai morreu com o coração ruim por causa dos barbeiros-de-choupanas e os
pulmões podres, assumiu de ajudar mamãe. Comprou até remédios caros
quando eu peguei essa maldita paralisia infantil que me aleijou para sempre,
ajudando demais minha necessitada e viúva mãe. Quando morreu de acidente,
ao cair de um cavalo árabe, depois de quebrar o pescoço na queda, foi
pranteado num velório sem igual, com gente de Itararé e região vindo ao
enterro concorrido. Até eu chorei. O sr. poderia não trocar o nome da rua que
o homenageia? É que ele merece.
Dr. Saulo concordou Mas com uma contraproposta: Que ele
trouxesse o nome das pessoas influentes da sociedade, autoridades e políticos
principalmente, que freqüentavam o pequeno bordel chamado Siriri das Putas.
Igor assentiu, apesar de nunca ter subido para aqueles lados, parte alta da
cidade. Mas quem sabe se, por lá, vingasse a desculpa de ir em busca de uns
sapatos para engraxar? Ganhou data para voltar.
Só que em cidade provinciana, as pequenas coisas nem sempre
passam desapercebidas. O menino pobre, entrando e saindo da pousada; a
amizade dele com um gaúcho bem apessoado mas discreto (e de pouca falas
com os outros do município) pôs desconfio nalgumas pessoas que não tinham

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mais o que fazer, ou tinham culpa no cartório do medo, da consciência pesada,
urdida de exagerada precaução.
Um dia, Igor José Damião foi parado na rua XV de Novembro pelo
Delegado da cidade, que num torto ford bigode estava levando uma biscate
tinhosa pro Dr. Pedro de Alencar fazer uns curativos. Tinha havido um
esparramo de briga no puteiro, o delegado tivera que puxar arma e tinha
havido alguns feridos ocasionais. Como a predileta dele era aquela polaca
argentina, peituda, de nome Hortência, ele mesmo, a título de prestativa
autoridade estava levando a fêmea de vida fácil pro médico. Foi curto e grosso
com aquele modesto engraxate capenga com o qual, por algum motivo, não
simpatizava:
-Moleque, quero você daqui meia hora lá na cadeia. Vá sem falta.
Quero ter um dedo de prosa séria com você.
Igor José comeu uns tecos de polenta frita com arroz-agulhinha
mais dois ovos de codornas cozidos, não avisou a mãe que normalmente estava
entregando trouxa de roupa numa casa de rico, e foi contrariado para a
delegacia. O titular já o esperava. Igor lembrou que o tipo, metido a valentão e
língua solta no contar palha, era do partido do prefeito, e conseguira aquele
cargo por tráfico de influências, pois nem bem estudado era, sequer tinha lá
muita moral para querer ser freio legal, de ofício, dos outros. Igor pôs arreio
na língua e só sondou a estranha educacão forçada do delega, Dr. Olegário
Batista.
-Quer umas balinhas de menta ou água fresca com groselha preta,
guri? Como vai sua mãe?
-Não, obrigado, seu doutor. Acabei de virar um prato cheio. A
mãe tá boa. O que o sr. deseja falar comigo.
-Quer uma gasosa de framboesa, um pedaço de doce caseiro de
cidra, um naco de rapadura de laranja-brava?
-Não sor. Vim só pela precisão apurada. Tenho que ir ganhar uns
tostões pra mistura em casa, o sr. sabe, eu sou pobre, ajudo minha mãe. São
tempos de vacas magras.
-Tá bom piá, vou direto ao assunto. Primeiro: por que você tanto
conversa com o gaúcho metido da pensão da Dona Lilica? Depois, em segundo
lugar, quem ele é exatamente? E, em terceiro lugar, sem esconder, por que
você deixou o costumeiro ponto da Estação Saudade onde eu já o vi fixo?.
Destrinche, vá!

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-Ora, ele é um freguês apenas. Parece que é do Rio Grande do Sul.
Depois, eu mudei de ponto para engraxar, porque a carestia com a Estação
Saudade só dava uma mixaria, uns caraminguás por dia. Rodando o centro da
cidade, andei faturando uns trocos a mais. Dei sorte. Acho que acertei na
mosca, ao variar de rumo.
-Com essa perna ruim? Você quer que eu acredite nisso, piá? Não
nasci ontem. Tenho cara de tacho? Tenho, é?
-Ora, o sr. pergunte pro gaúcho então.
-Qual o nome dele? Você está de maroteio comigo, é?
-Nem por força. Deusolivre e guarde. Não sei no nome dele, só
trato de doutor e olhe lá. Ele é meio introvertido apesar de muito asseado e
vaidoso.
-Não minta pra mim, seu traste. Alguns policiais meus sondaram
que vocês proseiam a gosto, ele na cuia a perguntar, você na flanela rápida a
dar com a língua nos dentes feito um cusarruim espeloteado, um filhote de
cruz-credo, matraca solta.
-E o que eu poderia contar para um estranho assim, sem mais nem
menos? Onde já se viu isso, agora?
-Por isso que você está aqui. Sou eu quem faz as perguntas. Não
tire o corpo fora que eu chamo sua mãe para depor sob vara. Se aprume, ara.
Comigo é de-assim: ou caga ou desocupa a moita!
-Mamãe anda ocupada, não sabe de nada, não viria.
-Bem, guri. Mofe um pouco aí nessa cadeira de palhinha. Vou dar
umas batidas nas estradas da divisa e volto em menos de duas horas. Escolha o
jeito e se lembre de tudo, pro seu próprio bem.
Mal o delegado nomeado saiu num barulhento sedan Chrysler mais
dois pracinhas, Igor José Damião saiu dois-por-dois. Resolveu avisar o dr.
Saulo, em quem passara a confiar; contar que tinha até sido ameaçado, estava
sob pressão. Talvez ele agisse rápido ou o defendesse da intromissão. Ou
então se revelasse fazendo tipo. O gaúcho estranho ali no seio de Itararé, dr.
Saulo, não gostou do que ouviu. Ficou puto da vida. Rascunhou depressinha um
telegrama e pediu que o menino levasse a mensagem até o telegrafista da
Estação Saudade. Foi o que o rapazola fez, puxando a perna direita, garrando a
descida da Rua das Tropas, levando a mensagem que tinha destino certo: a
Capital Federal do Brasil, São Sebasitião do Rio de Janeiro.
Mal voltou para pegar a caixa na pousada e ganhou mais uns
trocados do dr. Saulo, que elogiou a coragem e determinação do seu escolhido.

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Em instantes, saindo dali a caminho de casa, Igor José Damião foi rendido de
forma covarde por dois policiais broncos que, a mando do delegado valentão
vieram levá-lo à força, na marra se preciso, para continuar a prestar
depoimento, do qual, arredio e sem autorização, fugira feito um culpado. Ele
estava em maus lençóis, disse o fanhoso e folgado sargento Batatinha, fazendo
tipo de enxerido, metido a bosta.
Mal chegaram na cadeia pública de Itararé, lá estava tudo num
alvoroço armado, com o nervoso Prefeito presente, alguns Vereadores
embasbacados, o Juíz da Praça, o Coletor de Impostos da cidade, mais alguns
curiosos a sapecarem buxixo, no circo todo que então se armara. E a conversa
era séria: o Delegado dr. Olegário Batista tinha sido exonerado da função por
ordem do Presidente Getúlio Vargas. Que deu prazo para o Prefeito nomear
alguém sóbrio e sério, de confiança e justo, em prazo de 24 horas, sob pena do
Presidente mandar alguém direto do Rio ou fazer a indicação a seu bel-prazer.
Estava um espandongo a delegacia. Um verdadeiro pandemônio. O menino mal
chegou e foi logo dispensado de presto, sob o olhar de suspeição dos ali
enfezados conterrâneos. O Prefeito estava consultando as bases do partido (e
da família) para nomear alguém que pudesse por cabresto e montar de espora e
tudo.
Igor começou a ficar com certo medo do rumo que as
acontecências tomavam. Mas tudo aquilo ali ainda iria piorar, mal sabia o
coitado. Alguns botecos e baiúcas da cidade começaram a recusar os
encapotados de frango que sua mãe fazia. Desculpas maleixas, idiotizadas.
Umas senhoras damas da sociedade também resolveram trocar de lavadeira de
roupa. Igor, temeroso, preocupado, achou melhor avisar o dr. Saulo. Que foi
direto ao assunto, pondo o dedo na ferida e revelando-se por atacado,
proclamando por escrito, no semanário local, o jornal O Itararé: -Se fizessem
alguma coisas àquela casa, à mulher de cabelos grisalhos e seu filho coxo,
mandaria prender as famílias todas. Se os bares e empórios recusassem os
bolinhos da Dona Candoca Damião, seriam fichados em desconfiança,
investigados, os donos fechados no xilindró por tempo indeterminado e as
licenças de comércio cassadas. E mandou ofício ao Prefeito, ao Juíz e ao
Legislativo Municipal. Estava ali para ser ou indicar o Interventor da cidade.
Ou seja: mandava mais do que todo mundo, em caráter excepcional. Era a
verdadeira Lei no município, em caráter emergencial. E, finalmente,
revelando-se, saiu da pensão onde pretendia passar muito mais tempo
despercebido. Calculou de alugar uma casa melhor, de fachada. Contratou

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cozinheira, faxineira, segurança e o próprio Igor José Damião passou a ser seu
serviçal, braço direito, imediato, pau pra toda obra.
Foi quando aconteceu o pior. E Itararé quase pegou fogo outra vez,
como quando da chegada das tropas gaúchas conduzidas pela comitiva
revolucionária de Getúlio Vargas, no momento empossado como mandatário
do Brasil.
A casa de duas águas que o Dr. Saulo alugou, ficava exatamente
num quarteirão entre o prédio da Prefeitura e o da Coletoria Federal. Era com
frente de material e o restante da construção de madeira. Sala, quarto, copa e
cozinha, mais um banheiro e quintal mediano nos fundos. Na primeira noite que
passou ali, correu tudo bem. Na verdade, o gaúcho quase não dormia, ficando
meio insone até tarde da madrugada relendo clássicos franceses, ou
portugueses como Eça de Queiróz, Camilo Castelo Branco, quando não
avaliando anotadas informações que o engraxate Igor José Damião, pela qual
já se afeiçoara, lhe catava no rol da desconfiada cidade de Itararé. Gostava de
ouvir as prosas do povo, até do velho segurança pessoal, o negro Salustiano,
que a título de um amargo mate quente caprichado contava, entre outros causos,
que segundo as lendas de sua tribo trazida de Angola em precários navios
negreiros, quando compadre e comadre se juntavam em intimidades
pecaminosas, coriscos relampiavam no céu e depois uma assombração de
cabelo de fogo vinha galopar nas sendas da terra, como já vira acontecer ali
mesmo em Itararé. Havia na cidade mesmo, um folclore antigo sobre um tal
"Cavaleiro de Itararé" Lenda? Causo? Folclore rural como o do Neguinho do
Pastoreio, Mãe d'água, Boto-rosa?. Pois numa terceira noite sósia, após jantar
e despachar a cozinheira Siá Bentinha, uma preta filha de descendente de
escravos que lhe servia e muito bem; depois de pedir ao segurança matuto que
chaveasse o portão e fosse dormir, garrou a reler em francês a brochura
importada chamada O Vermelho e o Negro, de Sthendal. O lampião baixo mais
a lâmpada fraca e amelada a piscar lhe cansavam a vista. Passavam das dez da
noite quando cansou de ler e ficou ainda acordado, a cismar alhures. Apagou o
último cigarrete do dia e garrou a ponderar cismas sobre acontecenças,
pensando na lida. Tinha consigo que um dia iria atrás da mulher e lhe meteria
uma bala nas fuças, a desgraçada da traidora. O tipo que a forçara a dar no
pira, sumirem juntos, era um contrabandista de fronteira, um pé de chulé que
não valia sequer uma surra de chicote ou castração dos bagos, pois que estava
com os dias contados, jurado de morte por vários amigos revolucionários. Mal
desse com as fuças no Brasil e seria linchado em praça pública. Amava aquele

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mulher como nunca amara ninguém e acreditava que nunca mais iria amar.
Estava desacorçoado. Pensou nos filhos: Sara, Marcos e Lucas. Eram mais
parecidos com a mãe do que com ele. Só tinham a firmeza de caráter e o
excelente porte físico dele. Um dia ainda iria falhar a semana ali em Itararé,
pegaria um studebaker de aluguel com um chofér ali no pertinho Ponto
Primavera da Praça Coronel Jordão, e iria ver os amados filhotes. Pensou na
mãe anciã, esta sim uma mulher de propósitos firme, íntegra, uma santa beata
de Deus. Nesse entreter-se, madrugada a dentro, coalhado de reminiscências e
embrutecido de melancolia tercã, dr. Saulo achou que o cheiro de querosene
do lampião Aladim estava forte por demais. Dormia com meia janela aberta e
só uma folha de cortina de velcro segurando borrachudos e pernilongos. O
cheiro era ruim e o querosene com o qual cuidava de ler à noite não era
daqueles. O instinto matreiro de homem rápido da arma e no raciocínio,
apurou: alguma coisa estava para acontecer por ali. Sobressaltou-se. Sentiu
isso na apurada intuição. Mal vestiu a calça de gabardine sobre a ceroula
branca e o quarto clareou todo. Sacou da pistola espanhola, catou um maço de
papéis, atirou na fechadura da porta dianteira e deu-se para fora, vendo o
desboque aceso: tinham jogado querosene nas paredes laterais da casa e
tacado fogo. Nada mais podia fazer pois as labaredas iam altas. Sondou algum
maroto por perto, não ouviu bulha alguma de escape. Apenas os vizinhos do
lado e da casa de frente, como o popular rádula dr. Nequinha Luciano de
Mello e família a correrem aturdidos com baldes de água que, afinal, se
restaram em vão. Dr. Saulo agradeceu a ajuda que não chegou a tempo, deixou
o prédio em seu madeirame ser consumido totalmente pelas salamandras das
labaredas bravas, e foi bater tardio na pensão da Dona Lilica, buscando por
um quarto seguro. Então era assim que os inimigos que arrumara em Itararé
tratavam um Interventor que iria fazer uma limpeza política na cidade?
Marrudo, turrão, nem esperou o dia amanhecer a crista e foi até o telegrafista
de Estação, um subornado velho conhecido seu de antigas trocas e vendas de
muares em Santa Catarina, e ali passou o telegrama para o Rio de Janeiro,
pedindo reforço policial, militar, e mesmo uns janotas da policia pessoal de
Vargas a lhe darem segurança, cobertura e assessoria. Era isso e esperar. O
menino Igor, seu informante, falhou um dia, vindo um elemento qualquer, de
perto da paróquia, com a notícia triste que o coitado tinha sido atropelado por
uns selvagens cavalos do campo que saíram da planície onde viviam a solta, e
ganharam o periférico perímetro urbano, onde então colheram o menino lento
no escapar por causa do defeito, sendo atropelado. Dr. Saulo estranhou e já

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pensava uma visita à Dona Candoca Damião, adiantando uns remédios e
indicação que procurasse a Santa Casa de Misericórdia de Itararé, avisando
que os gastos e cuidados todos corriam por sua conta. Resolveu de sondar o
lugar onde os potros selvagens tinham saído do mato para aquele estranho e
inexplicável acidente suspeito. Algum sinal em si dava noção de risco.
No dia seguinte, montou num tordilho que o segundo marido da
Dona Lilica lhe arrumara a baixo preço de aluguel, e foi visitar o guri Igor, seu
serviçal de confiança e prestativo. Desceu a Rua das Tropas, sentido da
Estação Saudade, um pouco antes virou à direita do armazém do Seu Nicolau e
garrou uma tigüera baixa, andando por mais de mil metros troteando a meio
galope, onde choupanas e casebres simples, aqui e e ali, ora beirando o rio,
ora beirando os trilhos, revelavam a gente humilde da periferia carente de
Itararé. Passou um aclive, atravessou um córrego raso e estranhou de perto um
cheiro de pito aceso no ermo. Cuidou-se. De longe viu um movimento no
barulhar das moitas verdes, como se alguma coisa marrom se mexesse no
través. Um reflexo brilhou e ele se atirou do cavalo. Ouviu então as balas
passarem zunindo alto e não teve dúvidas: era uma emboscada. Estava para ser
morto. Num segundo sacou a garrucha e mirou uma resposta pra assustar a
intenção maléfica, depois catou a pistola espanhola e fez o mesmo pros lados
de onde sentiu que os perigososos tiros partiram. Ouviu gritos, grunhidos,
palavrões, depois os estranhos meliantes montaram sem organização e em
minutos ouviu o tropel dos sem-vergonhas, traiçoeiros, cagões, fugindo. Caçou
seu arredio animal, observou que os covardes tinham se afastado para uma
invernada ao longe. Teria que saber de Igor, não teria tempo para perseguir os
facínoras que o tentaram matar. Em minutos, mais sereno, limpando-se, refez o
trajeto a caminho da casa de Dona Candoca Damião. Uma choupana de pau a
pique, coberta de sapé e as paredes de barro meio que mal-caiada de um
amarelo fraco e feio. A chaminé soltava altos rolos de grossa fumaça. Na
cerquinha bateu palmas e sondou que o quintal da residência dava para mais de
duzentos metros, com galinhas, porcos e algumas árvores frutíferas. Dona
Candoca saiu a janela e acenou uma coisa qualquer, indagando o que ele
queria. Dr. Saulo identificou-se, pedindo para ver o filho que lhe era
conhecido. Dona Candoca abriu a porta da casa, depois o modesto portãozinho
de entrada e deu passagem pro gaúcho, apresentando-se:
-Está de cama o meu filho, umas costelas pisadas, muita
febre. Piora a cada dia. Estou sofrendo, carecida.
-A sra. levou-o ao médico como eu indiquei por terceiros?

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-Sim, ele foi bem pensado. Está de cama ainda. Mas piorou
muito porque não foi acudido a tempo, como disse o dr. Jonas de Alencar, da
Santa Casa de Misericórdia.
-Parece que atiçaram os animais assustados e selvagens pro
lado dele; ele falou alguma coisa, contou?
-Também crê nisso. Disse que ouviu alguém açodando os
bichos xucros no sentido do buraco da cerca da fazendola. O que queriam fazer
ao meu abençoado filho único?.
-Essa gente comprometida com os legalistas não são boas
biscas, comentou dr. Saulo, tirando o chapéu de feltro e entrando na casa
simples mas arejada e limpa. Garrou o quarto afastando a cortina de taboão e
viu o menino. Estava com o rosto inchado, amarrado em panos brancos no
peito, dormindo enfebre a custo de remédios para suportar as dores. Andara
tendo convulsões também, a mãe zelosa informou.
-Malditos sejam, disse, sem medir as palavras.
-Deus vela por nós, emprestou tom tênue na voz a velha mãe
do menino, vindo com uma garapa quente para acordar o filho e servir de
desculpa para saber a honrosa visita.
Enquanto o acordava algo assustado, como se estivesse tendo
um pesadelo, Dr. Saulo pediu licença para fumar, depois tocou a mão do
menino que desperto lhe sorriu mole mas agradecido, como se risse dentro da
alma do visitante ilustre em casebre tão modesto, quase miserável. Dr. Saulo
leu naquele sorriso triste que o piá prestativo não iria escapar. Sentiu isso.
Mediu os olhos chorosos da mãe e ela parecia querer esconder isso dela
mesma, em denodo de imedido afeiçôo, de terno contato. Estava desesperada
mas contia a foz do pranto.
-Eles vão pagar por isso também, disse o dr. Saulo.
-Deus sabe o que quer, o que faz, disse a velha a meio tom de voz,
segurando o gatilho do choro. Coivara no peito ardendo, rosto transfigurado.
Dr. Saulo era um molenga quando com afeiçôo. Reinou azedume
Em minutos saiu dali deixando alguns tostões para a mulher fazer o
possível em buscar ajuda para o filho. Mas não sentiu esperança de
recuperação. Montou no cavalo e dirigiu-se até a estação, para saber quando
viria o trem passageiro com a comitiva humana a lhe dar a guarida do apoio e
serviço, mesmo que para fazer algum trabalho ou contrato de morte, obra suja
que fosse. Estava revoltado. Já tinha muita mágoa no peito para suportar
aquilo. Iria caçar quem urdira de colocar fogo em sua casa, em matá-lo; e nos

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tipos metidos a sebo que pagaram e fizeram a tocaia e, era questão de honra
pegar os lazarentos que animaram os cavalos selvagens do mato a se
pincharem para cima do guri que de molóide mal conseguia andar direito.
Aquilo não ficaria assim. O telegrafista informou que o tal comboio ainda
estava lados de São Roque, Tatuí, São Paulo, segundo informações quentes que
chegaram a menos de meia hora, mas também havia indícios de tropa vindo de
Ponta Grossa. Procurou sossegar o facho mas recarregou as duas armas,
montou no cavalo e voltou para a pensão desconfiando de tudo e de todos. Era
um inimigo declarado para certa curriola ali em Itararé e tinha que se cuidar.
Questão de vida e morte. Os tipos contra-revolucionários não perdiam por
esperar. Era questão de tempo também. Mais dia, menos dia, os lazarentos
dariam com os burros n'água.
**
Na manhã seguinte foi desperto pelo jovial repórter Paulino Rolim
de Moura, do jornal semanário "O Itararé", querendo entrevistá-lo para uma
edição-extra. Dr. Saulo falou pouco, apenas confirmando que em breve estaria
assumindo totalmente a situação ali em na cidade. Depois de tomar um amargo
mate quente, procurou pelo negro Salustiano que servia na pensão para saber
do pobre gurí que tinha sido internado novamente, com os recursos que
facultara à mãe dele. Ficou de tromba o resto do dia, com a polícia fingindo
que investigava o atentado, tendo o novo delegado João Barreira, fazendo tipo
mas pondo a barba de molho com aquele entrão nas sofrências e prazeiranças
de Itararé, em tempos de vacas magras.
Enquanto um pequeno batalhão desembarcava na Estação Saudade,
Igor José Damião era enterrado no precário Cemitério das Andorinhas da
cidade. Não agüentara as dores e, com as pisadas dos animais selvagens tivera
hemorragia interna, fatal. Dona Candoca queria ser enterrada junto, parecia
uma louca, estava nas últimas também. Não duraria uma leva de meses. Dr.
Saulo intermediou para que desocupassem a primeira Escola Primária e ali
alojara a tropa, no local amplo fazendo também seu quartel, por maior
segurança e certa comodidade arranjada. Requisitou pessoal a lhe prestar
serviço, intimando a prefeitura a pagá-los. Quando soube do falecimento do
guri, a raiva buliu com seu destempero e resolveu agir. Ficou fulo da vida,
numa nhaca desgraçada. Tinha que mostrar autoridade.

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Mandou prender todos os políticos filiados ao Partido Legalista da
cidade. Pediu para um Sargento encarcerar a pão e água o delegado e
empastelar o jornal. Solicitou que intimassem o Prefeito para o dia seguinte
comparecer sob vara ao seu improvisado quartel, além de ter dado ordem para
que prendessem os suspeitos de sempre, fichados em desconfiança ou não. E
que investigassem, até sob tortura se preciso fosse, para saber o nome dos
culpados dos atentados que sofrera, e da morte do pobre coitado do serviçal
Igor José Damião. Foi um alvoroço no município todo, um rebuliço. Alguns
dos Vereadores sumiram no mapa. Houve até quem quisesse reagir à ordem de
prisão, mas, ao final do dia tudo estava sob controle. Até o Prefeito Florêncio
Ferreira ficou de vir entregar o cargo conseguido por sufrágio eleitoral.
Consentia que a situação grave do país assim o exigia, depois da renúncia
ocasional e emigração do Presidente Washington Luis atrelado à curriola da
chave política café-com-leite.
As celas da Cadeia Pública de Itararé ficaram cheias das tais
autoridades de alto nível social e financeiro. Mas não chiaram. Tinham hora
para visita e a bóia diária vinha farta das casagrandes das famílias. Só podiam
rezar e esperar o interrogatório, a instauração de processo e até a transferência
para uma cidade do sul, onde seriam bem vigiados e onde poderiam até ser
sentenciados.
Só que, no mesmo dia que chegaram vinte e dois soldados
revolucionários, mais cinco oficiais e dois cabos, além de dois sargentos, um
tenente e um capitão-padre maricão, mal-e-mal um praça foi sozinho cismar
ariticuns ou figos maduros num quintal longe do centro, e sumiram com ele. À
tarde, o Capitão, conferindo a contagem diária da turma para a missa antes da
sopa de fubá com couve rasgada de jantar, deu pela falta de um reco chamado
Osíres. Foi um alarme geral. Saíram todos a procurar, com tochas altas feitas
com cortinas das escolas molhadas em gasolina, o soldado faltante. Não
demorou muito e o encontraram enforcado num andaime alto da Estação
Saudade. Tinha o capote da farda aberto e no peito peludo, riscado à faca os
dizeres: Morte aos Revolucionários!
Foi uma loucura. Então havia um grupo de resistência, hein?
pensou Dr. Saulo que, apesar de paisano, civil, mandava na tropa toda como
um marechal. Aquilo não haveria de ficar assim. Mandou seus comandados
prenderem os familiares todos das autoridades já detidas. Mais da metade
evaporou, se escondendo nas matas distantes, garrando o vale do Ribeira, os
pagos longínqüos do Paraná, ou tomando rumo de fuga beirando o rio Itararé

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que daria no navegável rio Paranapanema e os levaria para mais longe ainda
daquele vespeiro que era Itararé. Foi uma correria danada. Um outro soldado
imprudente e infeliz, sem medir consequência e risco imediatista, saiu para
namoricar uma filha bonita de um fazendeiro plantador de muitos hectares de
trigo e milho, e ficou meio que sozinho numa coxilha, distante da tropa. Pois
foi atocaiado, laçado e capturado que nem anta e seu corpo devolvido sem a
cabeça na mesma montaria exangue. O pobre cavalo foi achado sem rumo,
cheio de sangue nos arreios de couro. Dr. Saulo não perdeu tempo. Ameaçou
fuzilar os antigos conhecidos membros do partido de oposição. Foi uma
choradeira geral na cadeia e na Escola que acabou por acomodar as famílias
amontoadas, mal comendo as sopas e pães rudes que os pobres empregados
ainda bondosos mandavam regularmente. Não foi nem uma semana e da tropa
toda foram sumindo aqui e ali, alguns soldados menos espertos, sendo que em
pouco tempo só restaram alguns temerosos gatos pingados e os oficiais
nervosos pois, acabaram em minoria, com poucas armas, com precária comida
e, por fim se dariam como se rendidos ali, quase que como reféns de si
próprios no Grupo Escolar Tomé Teixeira, com poucas chances de terem
trincheiras hábeis a conterem eventual arremesso popular. O telegrafista da
Estação Saudade sumira. O serviço não servia mais, com alguns poucos
medrosos pracinhas que ficaram não querendo fuzilar ninguém, cagando nas
fardas, já com boatos de que, dos que sumiram, uns tantos tinham mesmo é
deserdado, para angústia do babaquara Capitão-padre, do tenente algo ingênuo
e dos sargentos que, primos de sangue, eram valentões e preferiam morrer em
combate do que saírem de Itararé, mesmo que em situação de inferioridade.
Quando só restavam mesmo os oficiais e Dr. Saulo, mais quatro sardentos
soldados carcamanos, alguns fugitivos de Itararé souberam das novidades. E
retornaram enfezados, se armando, querendo vingança. Um tipo ruim feito
tropeiro pardo, apareceu com bandeira branca erguida num cabo de vassoura e
uma carta de formalidade ao Dr. Saulo. Ele teria a chance de pegar o trem
chamado Misto e retornar, de volta, com sua turma toda, embarcando sentido
do sul. As comunicações com o Presidente Vargas no Rio de Janeiro estavam
cortadas. Dr. Saulo prometeu pensar naquela rendição sem precedentes,
enquanto prometeu soltar os prisioneiros idosos, as mulheres e os doentes. Mal
sabia ele que, nem chegaria a embarcar, pois a Estação de Trem de Itararé era
um ótimo local para emboscada, onde ninguém escaparia e o tal trem mesmo
que supostamente os iria receber, estava era empilhado de raivosos
Itarareenses armados até os dentes, vingativos e azedos com a situação toda,

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mal sabendo que do Rio de Janeiro, chegara boatos via mascates de que
Getúlio Vargas -que soubera de tudo por um espião furtivo com panca de
caixeiro-viajante em Itararé- estaria mandando em regime de urgência mais de
mil soldados de combate treinados para dizimar qualquer maroteio de eventual
rebelião paulista ali na cidade. Os gaúchos morreriam e logo em seguida
Itararé seria totalmente destruída pelas tropas, ficando ainda pior do que seria
(se houvesse realmente) a famosa batalha que, com a proposital renúncia do
Presidente Washington Luis, o "barbado" (era esse o apelido chulo dele), não
ocorrera, não houvera.
Dr. Saulo Todeschinni contou mortos e feridos, sabendo que uma
rendição sem deposição das armas era o que melhor lhe caberia, saindo assim
de situação vexatória pior. Poderia voltar depois com tropa maior, do sul do
Brasil, dar a volta por cima, valer-se da qualidade bélica. Aprendera que
recuar às vezes era questão de estratégia, raciocínio lógico. Lera a respeito
n'algum romance francês sobre uma idêntica técnica de guerra usada pelo seu
herói preferido, Napoleão Bonaparte.
Pois o contigente militar e o grupo de Resistência de Itararé
finalmente acordaram - dado a situação emergente e arredia - em termo rápido,
de papel passado bilateralmente, que os soldados restantes sairiam pouco
antes das dez da noite, quando passaria o trem chamado Misto vindo do sul,
para onde deveria, forçosamente retornar, na marra. O restante das famílias
seriam solto logo em seguida. Os soldados não precisariam entregar as armas,
mas não poderiam levar bagagem alguma, sequer algum material de primeiros
socorros. Esse acordo entre as partes em conflito, visava facilitar aos
Itarareenses que resistiam contra aquele insano estado de coisas, no sentido de,
na Estação Itararé provocarem uma revolta; na verdade uma maquiavélica
chacina das grossas, matando todos aqueles intrusos. Dr. Saulo nem suspeitava
de nada, pois que estava acuado em sua apurada intuição, crendo que a saída
era até algo honrosa, o que não significava que ele, todo orgulhoso e turrão,
não voltaria depois, com o grosso de tropa ainda melhorada, ser mesmo e
definitivamente o Interventor da cidade, quando saberia como agir melhor;
como lidar com os valentões eventuais, somados a antigos moradores agora
corajosos, usando-se de mais firmeza, para não ser surpreendido como fora
por causa de uma tropa inexperiente, além de sua ingênua confiança na
aventada modéstia do pessoal caboclo de Itararé. Como se enganara. Pois o
sino da único Igreja da cidade, cuja patrona era Nossa Senhora da Conceição,
soou anunciando que era hora de saírem de onde se achavam rendidos em

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minoria. A multidão ao longo esperava o desfecho daquilo tudo, com alguns
sabendo da traição que se preparava como emboscada fatal na Estação. Os
forçados retirantes antes aquartelados desceram a Rua das Tropas, passaram
em frente ao armazém de secos e molhados do seu Nicolau que sentiu a perda
daqueles fregueses gastadores, subiram o meio viaduto de terra por sobre o
raso córrego da prata e, em menos de minutos, marchando desenxabidos, os
tipos num total de nove apenas, entraram na Estação Saudade de Itararé, com o
trem já esperando e uma Maria Fumaça soltando rolos de ar quente e tufos de
pó de carvão.
Depois disso - como a história da famosa "Batalha de Itararé"
(houve ou não houve?) - são várias as "versões" do final do problema
como um todo, que arrebentou ali na cidade, em idos de 1930. Lenda, história
oral, "causo"; o quê realmente aconteceu depois desse entrevero todo?
Finais Opcionais
Final Místico
Final Politicamente Correto
Final Fatal

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0l)-Um monte de Itarareenses que fugiu de Itararé no dia 24 de Outubro do ano
anterior, de l930, aos poucos foram retornando para Itararé, sondando tudo
com o rabo dos olhos, ainda temerosos. Alguns - que se esconderam nos
matões densos do Taqüarussú, ou nas coxilhas da velha Sengés, cidadela
vizinha no Paraná que tinha sido bombardeada pos gauchos também - voltaram
para a periferia, a sondarem o que tinha havido com a estratégica cidade de
Itararé. Haviam boatos de uma batalha que, afinal, não houve, pois o
Presidente da República, Washington Luís, resolveu cair fora, findando a velha
república da política café-com-leite e deixando a região de Itararé entregue
aos alvissareiros revolucionários gaúchos. Com aquele grupo de soldados ali
na Grupo Escolar, com alguns falsos boatos de estupros, de algumas fogosas
mocinhas da sociedade violadas por tipos fardados, alguns casos apenas
inventados comentários maldosos, as turbas locais imprudentemente
nortearam-se por ódio coletivo. Só havia na consciência pública um misto de
nojo e vontade de provocar violência e vingança, custasse o que custasse. Um
bando armado até os dentes, pararam o trem chamado Misto ainda na estação
rural do Rio Pelame, antes de Itararé, ali entricheiraram seus capangas e até
alguns matadores contratados, bons de pontaria, verdadeiros assassinos de
aluguel. Mal entraram no vagão de passageiro de primeira e segunda classe, e
o trem seguiu rumo para Itararé. Ali o vagão ficaria bem no centro da
plataforma já preparada de vazio e silêncio proposital. Quando os rendidos
soldados gaúchos entrassem na Estação, tendo por trás os Itarareenses mais
velhos também muito bem armados, seriam mortos, trucidados;, seria um
massacre. Todos seriam fuzilados pela frente e por trás. Não teriam saída. No
entanto, mal sabiam - os que tocavam os soldados restantes, como gado - que
um medo coletivo tomara conta da velha Estação e deixaram os vingadores que
ali chegaram bem assustados. Chegando na Estação Saudade, fronte cerrada,
depauperado, o Comandante Saulo Todeschinni reparou: a arraia miúda ali
estava aturdida, com os bravos Itarareenses esperando-os como se
boquiabertos. Reparou ainda, estranhamente estavam todos desarmados,
aturdidos e pálidos como se vissem fantasma. Dr. Saulo sentiu a mesma coisa e
arrepiou-se: o menino que tinha morrido para mais de mes, o humilde Igor José
Damião, ali estava engraxando os sapatos brilhantes (como se de uma estranha
espécie de neon lilás) de um anjo com uma enorme espada de dois gumes na
mão. Os que vinham tocando os soldados e prontos para a mira fatal e
definitiva, fugiram, correram aloprados. Será o impossível? A Estação estaria
encantada? Tinha ali a alma penada do guri que era querido por atacado na

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cidade de Itararé? Alguns tipos sumiram depressinha. Os que se seguraram na
coragem, viram o Dr. Saulo ser cumprimentado pelo piá de perna torta, depois
o Anjo com sapatos de luz e asas transparentes ficar com a espada alta na mão
direita, entre os soldados e os que já não pensavam em atacá-los por falta de
coragem. Em segundos os minguados soldados gaúchos embarcaram salvos e
sãos, e o trem Misto voltou, seguindo seu novo improvisado destino rumo ao
sul. Mal desceu, sentido do declive do ramal férreo do Bairro Velho ali
pertinho, um por um os Itarareenses foram se dispersando. Alguém, meio
medrado de constrangimento, muitas luas depois, disse ter ouvido a conversa
do fantasma do guri Igor José Damião filho da Dona Candoca Damião com Dr.
Saulo Todeschinni, jurando que o menino "encantado" falara que os
Itarareenses eram valentes, de verve, altivos, jamais seriam de trair, de fiar os
fios da barba em vão, pois que honravam as calças; muito menos de eram de
emboscar depois da palavra de armistício empenhada no consumado prisma da
história. Que estava ali para confirmar isso, facilitar para que não houvesse
seqüilho de injustiça histórica como a tal "batalha de Itararé" que virara
motivo de chiste no Brasil todo. Uma lenda ainda correu como quirera de
prosa, de que o anjo tinha a feição doce e terna do finado Gaetano Giácomo
Andreluicchi, aquele mesmo por quem o menino pedira para não mudarem a
rua que lhe rendia homenagem depois de morto em acidente, pois o tipo era
muito meigo, íntegro, doce. Mas isso nunca ninguém confirma se é verdade,
invencionice ou só um mero "contar palha" de quem não tem mais o que fazer
na lida cotidiana dos dias bucólicos de Itararé.

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02)-Os Itarareenses que tinham dado no pira e, somente aos poucos,
ressabiados, foram voltando cismados com o revés da situação, se infiltraram
nas turbas com uns velhacos mal-encarados que vieram no rabo das
acontecências a se fincarem em tendas de lona na periferia de Itararé, como se
matadores que se baldeavam para qualquer lado onde fossem regiamente pagos
para algum tipo de serviço sujo. Pois juntaram esses lacaios mercenários mais
os Itarareenses com o orgulho e o brio feridos, e fez-se literalmente um
batalhão bem heterogêneo. Pararam o Misto ainda antes de Itararé, na estação
vicinal do Rio Pelame, e ali montaram o aprumo para o que, em minutos seria
a emboscada, o massacre, tendo por trás outra tropa paisana de itarareenses
marrudos a cercarem os gaúchos, deixando-os sem saída; acabando com a raça
de estrupícios deles. Mal sabiam esses Itarareenses que os outros vagões
estavam cheios de soldados vindo de Curitiba, a mando do Presidente Getúlio
Vargas que recebera o pedido de socorro urgente de um simpatizante secreto
do ramal férreo de Itararé. Quando os revoltosos de ocasião, finalmente
souberam disso pelo nervoso e dissimulado chefe de trem, foram pulando fora
do Misto ainda em movimento que, afinal na Estação de Itararé não restou
nenhum deles, nem pra remédio. Ou para segurar o rojão. Quando os soldados
gaúchos rendidos em Itararé, tocados como se gado com sarna pelos cidadãos
nervosos, chegaram na Estação, pegaram espaço no trem e aguardaram o apito
de saída. Os que estavam ali, esperando o cerco fatal, vendo que alguma coisa
falhara, resolveram deixar por isso mesmo, e que aqueles pobres coitados,
fracos, doentes e combalidos, partissem. Afinal, Getúlio Vargas já tinha ganho
a batalha mesmo, e ficarem ali se entrevando com uns poucos retardatários na
história, não iria valer a pena. Foi a sorte. Pois se atacassem então aconteceria
mesmo a Batalha de Itararé, todos seriam irremediavelmente mortos, e, os mais
de trezentos soldados alojados camufladamente naquele comboio, então
invadiriamItararé e destruiriam mesmo tudo, queimando casas, ranchos,
trigais, chiqueiros, plantações, acabando para sempre e definitivamente com os
Itarareenses que ali ainda falavam fora de propósito em honra e glória. Conta a
lenda que foi Nossa Senhora da Conceição que livrou Itararé de um massacre.
Outros, mais serenos, dizem que foi mesmo a bondosa interferência do Dr.
Saulo, em memória do itarareense mais ilustre que conhecera: o pobre
engraxate Igor José Damião que para alguns da cidade tinha virando santo; até
andara fazendo alguns milagres, com comentários variados no município. Mas
isso já é outra história.

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03)-Uns mercenários do sul e até cupinchas estrangeiros de fora do Brasil,
falando espanhol mestiço, andaram aportando na região de Itararé, crendo que
ali teriam serviço sujo para lhes render uns tostões minguados em difíceis
tempos de carestia de guerras civis. Pois foram contatados por vários fugitivos
de Itararé, com medo de serem mortos quando da chegada da comitiva
vitoriosa de Vargas, e se aprumaram de acabar com aqueles gaúchos restantes,
uns borra-botas, a arraia-miúda do que sobrara dos revoluçionários que
invadiram Itararé. Pois esses tipos colocaram pedras nos trilhos e barraram o
Misto na precária estaçãozinha do Rio Pelame, lados do povoado de Gralha
Azul, e ali tomaram de assalto o trem cheio. Em Itararé receberiam os fugitivos
soldados a bala. Quando os pobres coitados dos gaúchos rendidos em minoria
adentraram na Estação Saudade de Itararé, já viram o trem esperando-os. Atrás
deles ia o restante da população de Itararé, numa soma de furiosa raiva e ódio,
querendo ver o circo pegar fogo, entre uns conterrâneos valentões armados,
mal se segurando de raiva pela vingança que afinal se aprontava de finalmente
acontecer. Quando o dr. Saulo percebeu era tarde demais, muito tarde. Das
janelas escuras dos vagões de trens, os rifles, pistolões e garruchas
dispararam. Atrás, a população assustada procurou se esconder de eventuais
balas perdidas, enquanto os marrudos companheiros cidadãos Itarareenses de
brio, de verve, armados de orgulho e feridos também de raiva, mandaram balas
sem piedade, repetindo tiros sem parar, esvaziando as cartucheiras e os bocós
de munição. Em minutos de balburdia sem revide de tempo, fez-se finalmente
um horrendo silêncio de morte. Dos gaúchos só restavam os corpos feridos de
luto para sempre, as fardas sujas com postas de sangue, os rostos desfigurados
de susto e dor, pela tragédia que então se consumara. Com carroças cobertas
de lona levaram os cadáveres para jogar no "tembé" de suicídios da gruta do
rio Itararé, onde as cavernas secretas (dos precipícios das lapas bentas)
destruiriam quaisquer provas ou vestígios da enorme tocaia fatal. Getúlio
Vargas nunca ficou sabendo da coisa horrível que acontecera com seus pares,
ninguém veio procurar os tipos ali aquartelados, sequer os tais soldados
prometidos pelo Presidente revolucionário deram as caras em Itararé, por
baita sorte da estratégica cidade de divisa. Apenas, aqui e ali, na ótica da
chamada história oral, corre uma lenda que, de tempos em tempos, de
madrugada, uma tropa fantasma perdida na Estação Itararé geme e peregrina
em busca dos caminho de seus pagos na estância do céu, puxada pelo fantasma
transido do Dr. Saulo Todeschinni de olhar aturdido, sempre de mão dada, -

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como um pobre e maleixo ancião cego - com um guri que, juram, tem a feição
triste e desenxabida da alma penada do humilde engraxate Igor José Damião.
(FIM)

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PARIS, ITARARÉ
Jean-Marie Letoth estava feliz, muito feliz. Dava para se ver
uma espécie de halo de leve “arco-íris” ao redor do corpo espigado e ereto
dele. Tinha realizado a bendita viagem de sua vida de meio século. Incrédulo,
não podia acreditar; queria beliscar-se para ver se aquilo tudo era realidade
mesmo, ou continuação periférica de um grande e belo sonho. Por mais de três
décadas tinha guardado dinheiro, jogado nas cartas, na loteria, no bicho - era
seu hobby e sina os jogos de azar - e na mega-sena também, tentando faturar
alto e ir conhecer Paris, a cidade que seu finado pai adorava, e até lhe dera um
nome em francês. Os imigrantes húngaros, antepassados deles, estiveram em
Paris quando a cidade estava ainda para ser sitiada pelas tropas nazistas de
Hitler, mas os "Partisans" e a então clandestina (e ainda em fase embriã),
Resistência Francesa lhes salvara a vida, passando-os fronteira a fora, sentido
de Casa Branca, Colônia Francesa na África, depois Portugal e, finalmente,
rumo a América. De tanto ouvir o velho patriarca falar da beleza da Cidade-
Luz, que Jean-Marie Letoth só pensava em conhecer a famosa cidade mais bela
da Europa, berço das civilizações. Pois um dia somou a grana poupada em
mais de vinte anos como funcionário público, e deu-se com alegria por saber
que poderia, pelo menos, financiar parte da viagem dos sonhos e passear uns
quinze ou vinte dias por Paris, realizando sua lenda pessoal. Era um milagre.
Não acreditava que estava ali, quase "encantado" de estar. Muito apegado à
enorme família, mal desembarcou no Aeroporto Charles de Gaulle na capital
da França e deu uma baita saudade de Itararé, da qual saíra três dias antes,
depois de comprar, de passagem, na Praça Coronel Jordão, em sua santa aldeia
natal, um bilhete inteiro de loteria, com um número de final treze-treze
(borboleta) do amigo boêmio e ensaiador de quermesses, Tepa Ospedal;
depois de enfrentar a viagem com ônibus intermunicipal de Itararé até o
Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, e depois de ver, de avião, a cidade de
Paris, do alto, fantástica, iluminada, um verdadeiro cenário histórico de lastro
arquitetônico e cultural. Iria conhecer Campos Elíseos, iria ao Museu do
Louvre ver a famosa tela Mona Lisa de Leonardo da Vinci, iria comer umas
baguetes com queijo especial, provar in loco o "bouquet" das champanhes;
exercitar seu meio-francês capenga e caipira, conhecer também a Rua das
Flores e seus artistas famosos em cartões postais, além de comprar uns
badulaques de souvenir, comer os pratos deliciosos da capital francesa que
misturavam coisas salgadas com agridoces e frutas. Não acreditou. O peito

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rendido em emoção, a alma iluminada. Folheou o jornal Le Figaro, e, tentava
entender alguma coisa para fazer biquinho e pose na leitura forçada na
memória de tempos que aprendera no colegial, com o Professor Samuel
Barbosa, a língua francesa, onde mal-e-mal teimava demoradas leituras de
Rimbaud, Proust, Balzac e outros famosos autores franceses, mais de décadas
atrás. A saudade de Itararé era imensa. Sempre haverá Paris, pensou. Sempre
haverá Itararé, parafraseou um pensamento sério, pois amava sua santa terrinha
que deveria cantar em verso e prosa, sempre, como bem pregou o poeta russo
León Tostói que também tentara ler em francês. Pois entrou numa cabine
telefônica cor de abóbora ainda no Serviço Francês de Telefonia, dentro do
Aeroporto Internacional lotado, e pediu, num francês nervoso, rápido e
precário, que a telefonista ligasse para a distante Itararé, do outro lado do
oceano, no outro continente, no Brasil ao sul do Equador, na bucólica aldeia
fincada na divisa entre o estado de São Paulo com o Paraná. A telefonista,
incomodada no mal-entender daquele confeito esquisito de língua a barulhar
em arremedo de sintaxe pedrenta de ruim, avisou que aguardasse porque as
linhas internacionais estavam ocupadas e iria demorar. Mas Jean-Maria Letoth
esperou pois era pacencioso como um muro. Um determinado. Queria contar
para a adorada mãe, para os alvissareiros tios, para os irmãos, para os obesos
primos, para os carinhosos sobrinhos, para os cunhados “pentelhos”, para os
amigos pinguços da boêmia, para os curiosos vizinhos do seu bairro, o que era
ver Paris de cima, num rasante vôo gostoso, onde a emoção da viagem tão
sonhada não tinha preço e estar em Paris era até como estar dentro do seu
próprio coração. Completada, finalmente, a difícil ligação, a mãe puxou a
alegre supresa de contato do outro lado. Cada um de seu jeito peculiar,
emocionou-se, chorou. Jean-Marie Letoth era manteiga derretida e muito
apegado à mãe artista, a professora de pintura Dona Jandaia Joaquina. Que
contou estar morrendo de saudade, puxou conversa fiada e esticou falas triviais
dizendo da azia do outro filho, o caçula, da febre da netinha adorada, do
pessegueiro florido da vizinha defronte (do qual era madrinha) e foi por aí a
fora foi o falatório amoroso. Depois o irmão mais velho de Jean-Maria Letoth
quis falar, e disse, do jogo de malha no clube de campo - tinham vencido a
dupla campeã, o Zé Vieira e o Dirceu Babão (e dado lambuja!) - da serenata
feita numa ante-véspera na casa do Silvio Machado em bodas de prata, do
gostoso toucinho frito no almoço, do número do bicho que dera no jogo, do
resultado da Loteria, borboleta, treze-treze, depois, ainda emocionado - o
sonhador do irmão do outro lado da linha falava de Paris, ora bolas - passou o

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telefone para a irmã Maria Odethe. Que já se confessou rendida de saudades,
pediu um perfume famoso - "Vivre", viu maninho adorado? - e ainda cobrou
um cachecol de pura lã, um "blaizer" de seda e por aí esticou a praga da
converseira. E ainda insistiu: -Não esqueça os cedês da e da Edit Piaf. O
proseio meloso esticou longe na falácia gostosa. Sem tirar nem pôr. Depois
foi a sobrinha com sarampo (não contou do furúnculo no róseo glúteo)
querendo dar um alô caprichado, de tromba, em seguida a vizinha Leila,
grávida, com dord'olho; o primo zarolho querendo um livro de poemas de
Rimbaud - ia fazer um trabalho para recuperar notas na faculdade de letras da
cidade - e assim a conversa passou de horas, com Jean se sentindo no palco
alegre da vida, boêmio e comunicador que era de benquisto. Vieram amigos; o
boato correu que ele estava na linha telefônica. Faz-se enorme fila em frente da
casa dele de gente amiga, querendo falar com o passeador sortudo. A Dona
Jandaia largou os pincéis molhados em óleo de mamona e foi servir tubaína
tutti-frutti, groselha preta com água gelada, limonada, jaboticabas, polenta
frita, amendoim torrado e pés-de-moleques. Parecia que todo o bairro, toda a
admirada Itararé, queria falar com o filho querido que estava gostosamente
feliz em Paris, a capital cultural do mundo. Quando Jean-Marie Letoth
percebeu, já era quase noite. Tinha chegado lá pelas três e tanto, e o
escurecido noturno já punha seu beiço ali no saguão do aeroporto, entre a torta
fila curta da alfândega e o agitado Serviço de Imigração. Viu que tinha falado
demais. Estava querendo urinar, bexiga cheia de soda que tomara no fim do
vôo. A fome apertava um buraco nas tripas e do outro lado era mais uma
sobrinha com faniquito (ah as bochechas da Carlinha), uma outra prima
(Annamaria) cismando, a mãe querida querendo saber se ele tomara o remédio
de homeopatia para gases, se comera na viagem, tudo isso. Quando Jean
pensou em desligar para ir provar uns pratos típicos da França, a linha como
que por sorte caiu e a telefonista - do outro lado do guichê com gestos
aloprados e preocupada - chamava-o para acertar a cara ligação da Europa
para o antigo Novo Mundo na sulamérica atrasada, de terceiro mundo, pobre.
Jean-Marie tinha levado a bufunfa em dinheiro vivo. Quando a mocinha ruiva,
de incisivos olhos castanhos, fez biquinhos e apresentou o papelzinho branco
feito ticket da conta extraída da maquininha oficial de somar o tempo da
ligação pro exterior, Jean-Marie quase caiu de costas. Levou um baita susto.
Será o impossível? Refugou. Pediu recontagem. Catou o tufo de dinheiro
brasileiro junto com dólares e francos franceses no bolso da algibeira, do
paletó e da pochete, da mala e da frasqueira, e viu que o montante mal pagava

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a cara e demorada ligação, só sobrando uns míseros trocados para uns lanches
baratos e olhe lá. A passagemde volta estava marcada para dali a pouco mais
de quinze dias e, por ser financiada num pacote turístico de segunda classe,
não podia ser vendida, antecipada, trocada e tudo mais. Só poderia voltar dali
a dias e estava com pouco dinheiro para sobreviver em Paris. Deixou as malas
com roupas num armário de terceira do saguão do aeroporto. Mal saiu nervoso
e preocupadíssimo do local já às moscas, e viu que a noite ia alta. Sondou o
derredor. Crendeospadre! O quê era aquilo? Onde estava? Olhou e não
acreditou. "-Cest la France?" perguntou-se. Estava muito frio. Forçou os
olhos estupefatos e viu a cidade entregue entre vários grandes latões de lixo
pegando fogo e pessoas vivendo ao redor deles; como se em fogueiras tribais,
se esgueirando pelos cantos ou sapateando como se bêbadas (ou drogadas); se
esquentando do frio que fazia e que quase lhe cortava as orelhas. Aquela era a
verdadeira Paris? Seria área abandonada, periférica? Onde estavam os
artistas de rua, os policiais garbosos e faceiros, as árvores frondosas? Só
viadutos e mendigos, alcoólatras, asiáticos, latinos, traficantes, ladrões,
prostitutas, viciados. Lembrou-se do filme "Os Miseráveis" se sentiu dentro do
enredo sombrio, um personagem marginal também. Pobre coitado. Uma
lembrança rápida do caro telefonema para Itararé veio-lhe à mente. Correu
sondar o bilhete de Loteria Federal do Brasil e teve um ataque de nervos: era o
número treze-treze! Deus do céu! Tinha, finalmente, ganho o primeiro prêmio,
aleluia!; poderia fazer mil viagens daquela, comprar ações da companhia
telefônica da França; poderia ir morar definitivamente na Europa, ou passar
temporadas de verão em praias de veraneio de lá, mas, segurando o
entusiasmo, ponderou melhor. Conteve-se. Tinha uma realidade crucial pela
frente. Segurou-se no desmanche de alegria imediatista, caindo na real: estava
era com míseros tostões contados apenas para o bonde, pro metrô, para
eventuais lanches simplórios rápidos e ainda sujeito a ser morto, assaltado, e,
tempos depois o bilhete não valeria nada, pois que o prazo para receber o
prêmio era de poucos dias apenas. Num orelhão público, servindo de mictório
para imigrantes pobres e descamisados do neo-liberalismo globalizante da
França (novamente sob a retrógada política de extrema-direita) tentou numa
lista telefônica velha e sebosa achar o telefone da Embaixada do Brasil. Achou
até o endereço e número do consulado da Bolívia, da Colômbia, do Perú mas a
página sobre o B de Brasil tinha sido arrancada, talvez rasgada para limpar a
bunda de alguém que ali, desprevenido, fizera a enorme e fedida necessidade
emergente já cheia de beronhas verdes e baratas gordas. Jean Marie sacou que

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estava era perdido, no mato sem cachorro; teria que sobreviver com seu parco
e mal-treinado francês na rua, até o dia de embarcar de volta magro e faminto
ao seu país, apesar de estar com a chamada sorte grande na mão. Tentou ligar
para a Embaixada da Colômbia num ridículo e precário espanhol fajuto, mas
foi atendido em francês e não entendeu patavina nenhuma daquela língua
enrolada, ainda mais com seu precário sotaque de terceiro mundo. E nesse
propósito perdeu mais algumas moedas que tinha sobrado de uma troca que
fizera numa casa de câmbio em São Paulo. Súbito sentiu o cano de um revólver
na cabeça e um tipo deu-lhe uma ordem imperiosa com pedido num francês de
sotaque rústico, sofrível, pedrento. Mal virou-se e viu que era um negro
magricela e alto, com certeza de alguma antiga ex-colônia da França. O sujeito,
abrupto, nervoso, com dentes podres, mal cheiroso, começou a chacoalhá-lo,
bem violento, e animalescamente pedia alguma coisa, cutucando seu fígado
com a arma. Jean-Marie mostrou os bolsos vazios, e, num outro apenas
algumas minguados dólares para a rala sobrevivência. O elemento, de presto
tomou-lhe os míseros trocados, apontou o revólver para a sua cara aturdida e
corada, fez um gesto curto de chiu e saiu correndo pela viela escura onde
desapareceu em segundos num "trottoir". Jean-Marie estava finalmente duro
mesmo. Teria que perambular pela cidade, até comer de lixões sem exigir
"goumert", talvez adentrar a um albergue noturno, invadir algum quintal em
busca de sobreviver da sina dos meliantes rueiros com armas pesadas. Onde
estava a Paris sagrada de seus sonhos? Que saudade de sua família, de sua
mãe, de seu povo, de sua aldeia. Em Itararé estava seguro. Um seu amigo
poeta, conterrâneo, brincava dizendo que a cidade era onde se podia viver
tranqüilamente, desde que se fosse louco ou artista. Quem mandou querer sair
de seu ninho feito uma Andorinha espeloteada? Chorou. Aquilo tudo de ruim
devia ser praga de algum invejoso de uma figa. No lixão fedido de uma
lanchonete vegetariana, caçou um meio mamão podre juntando mosquitinhos e
joaninhas, e ratos lhe fizeram companhia quando comeu sem fazer nojo ou
medida de desdita. Estava muito fraco e não tinha escolha. Depois ainda catou
uns pedaços de hambúrgueres com bolor e nacos de frango com formigas
vermelhas. Ouviu apitos e silvos da polícia, sirenes repetidas. Viu mendigos,
pobres imigrantes, moradores de rua, traficantes clandestinos e assaltantes
vagabundos correndo e, vendo-se como estava, mal-cheiroso, sujo da viagem e
de um peregrinar insano, o instinto pediu que corresse também. Foi de roldão.
Que levasse a breca. Uma criancinha - surrada de vida, com sarna e ranho
verde - tropeçou num latão preto de lixo e rolou, aos gritos e desesperada,

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para o lado de onde vinham os cavalos com os cara-pálidas da lei. Jean Marie
catou-a e continuou correndo como nunca, acompanhando o flanco de fuga dos
pobres coitados até um bosque mal-cheiroso ao lado de viadutos sujos e
enormes vários prédios antigos condenados. Ali parou e recebeu um doce
sorriso de uma cigana mendiga que lhe ofereceu, num sinal de gratidão, um
canto misto de madeirame ruim e pedras, onde uns conhecidos faziam um
sopão comunitário de tudo que cataram numa feira próxima, tomates verdes,
cogumelos, raízes, folhas, postas quase putrefetadas de peixe. Tudo aquilo sem
lavar, sem sal, servido com um resto de água de chuva ácida que caíra na tarde
anterior, a qual guardavam em baldes para os esporádicos asseios primários,
matinais. Jean-Marie não teve escolha. Pensou em ligar outra vez a cobrar para
Itararé. Não se fez entender pela telefonista de plantão, com seu francês de
araque e pior sotaque ainda, concluíndo, finalmente, que na França não tinham
esse serviço de pendurar a ligação internacional pro destinatário pagar,
podendo ser que depois nunca recebessem a despesa do país que
consideravam inferior, atrasado. O Brasil tinha fama de calotes no extrior.
Jean Marie embrulhou o bilhete premiado num jornal, depois colocou o
invólucro num saco plástico verde-musgo, arumou ainda num pedaço de pano
de lenço e prendeu junto aos documentos volumosos de virilidade, esperando
que ali não fosse atingido e nem em tal área genital procurassem o que roubar.
Só tinha dificuldades mesmo era para correr ou urinar, ocasião que tinha que
tirar o pacote de lado da obstruída mira máscula. Ficou com medo de ter pego
herpes ou coisa pior, pelas feridas que lhe saltavam no rosto. Teve gases e
passou mal. Observou casais de mendigos se amando sobre jornais. Um deles,
nervoso, lhe ofereceu uma bebida e ele tomou meio que forçado, respeitoso
feito um surdo-mudo, mas vomitou imediatamente em seguida e ficou com
cheiro azedo na roupa por causa daquela espécie
de "maria-louca"
quimicamente composta com vodka, e uma imitação da bebida russa também
feita nas coxas, com álcool puro e resto de água sanitária. Estava perdido.
Saíra do seu paraíso, Itararé, para o inferno da tragédia, não da comédia de
Dante. Que sina era aquilo tudo? Lembrou-se de ter lido O Estrangeiro de
Albert Camus. Lembrou-se adorada mãe e chorou sem esconder o desarranjo
emocional. Misturava lembranças, pensamentos. Estava perdido. Uma senhora
de uns quarenta anos lhe ofereceu corajosamente o afago íntimo e explícito,
depois mostrou os seios de manga-rosa murchos e finalmente deu-se na
intenção de consolá-lo sexualmente, pois que Jean-Marie não era assim tão
feio, sendo até bem servido de simpatia. Quando Jean Marie pôs desconfio e

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ereção na intenção da mal intencionada fêmea, talvez doente, sem qualquer
higiene íntima ou ocasional precaução, a muito custo e controlando um nojo
disfarçado, renegou Falou que não queria usando em timbre baixo e tons
monossilábicos o francês velho, antigo, mal treinado, valendo-se também de
um escapado "jamé" qualquer, para se fazer entender, pelo menos. Repugnou-
se. Foi um grande erro. A aturdida e desconsolada "mademoiselle" atarantada
feita uma cigana louca, com uma cerzida saia godê xadrez, talvez entupida de
drogas pesadas, virou uma fera, parecendo uma fêmea louca, recusada no ápice
do cio. Deu um grito de raiva em pedido de socorro, com uma tropa de amigos
todos mal-encarados correndo a acudi-la com pedaços de paus, correntes,
arames, ferros, restos de andaimes. Jean-Marie teve que se safar outra vez,
escapando correndo lépido, chutando empecilhos, se desvincilhando de um
tipo que cortara seu caminho, dando um chute num velho bêbado que o tentara
impedir no corredor de fuga, forçando um pique rápido pois alguns traficantes
também não gostaram da sua inoportuna escapada rude e em polvorosa, e
temiam que a polícia francesa viesse atrapalhar os negócios ilícitos em
atenção daquela balburdia fora de ocasião e propósito. Só muito longe é que,
despistando os perseguidores, sossegou a correria louca. Jean-Marie olhou de
longe e viu a bendita Torre Eifel de um lado, com o rio Sena de outro a
receber muros úmidos em suas margens, e dentro dele um veículo estranho a
navegar, parecendo um daqueles enormes botes esquisitos que cruzavam o
Canal da Mancha, levando namorados e turistas, ao som de acordeons
sapecando baladas francesas, até Londres, a capital da Inglaterra, do outro
lado do Canal escuro de águas sujas e espumosas de diesel e excrementos. O
tempo vencendo a premiação do bilhete, a fome apertando no corpo abatido e
cansado, uma urticária epidérmica e uma gastrite nervosa abrindo um buraco
no estômago, quando Jean-Marie entendeu que iria morrer em Paris, como um
desconhecido anônimo, perdido, "à outrance"(1), não identificado.
Compreendeu que seu bendito bilhete premiado seria enterrado junto com ele,
que sozinho nunca acharia a Embaixada do Brasil. Tinha que pensar bem e
pensar rápido. Não era o queridinho da mamãe? Não tinha fama entre amigos
boêmios de ser inteligente, culto, ponderado, lúcido? De que lhe valeria aquilo
tudo se não encontrasse uma solução? Tinha que crescer na amargura que lhe
amarrava o peito entrevado. "A quelque chose malheur est bon"(2), pensou em
francês com o qual vinha se acostumando. Nunca iria morrer fora de Itararé,
Sentira que sua aldeia natal era tudo, sua família era seu paraíso. Paris? Bem,
a Cidade-Luz era apenas um sonho que iria acabar em pesadelo, e se ele

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demorasse muito a tomar a sábia decisão certa. Paris seria seu túmulo. Não
esperava por isso.
Não pensara que um dia conheceria assim, de forma
infame, a terra de Napoleão Bonaporte, de Catherinne Denneuve, de Alain
Delon, de Jean-Paul Belmondo. Viveu precariamente pelos cantos frios,
úmidos e sujos da cidade, sobrevivendo como podia, feito um banana na
"bas-fonda"(3) . Se pudesse arrepender-se; se soubesse o tampo do tempo,
resgataria o passado em sua aldeia natal, Itararé, onde era amado e vivia
régiamente em paz. Entre os miseráveis de Paris aprendeu a discrição
extremada, a falta de zelo íntimo; a tapar os olhos, a boca, os ouvidos.
Crimes, furtos, subornos oficiais, corrupção generalizada. Máfias nacionais
e quadrilhas de asiáticos e outros imigrantes fugidios da miséria de antigas
colônias ou regimes comunistas em decadência. E pensou que a violência, a
fome e a corrupção institucionalizada eram coisa só do Brasil, um país
nada sério, como uma lenda a respeito de De Gaulle apregoava. Agora era
um traste, um lixo humano. Sabia que não podia ser maior e melhor do que
era. Não podia escapar para sempre. Ninguém pode fugir do lugar que está.
O que os parceiros dessa desgraça existencial precariamente lhe
ofereciam, aceitava. Comidas, bebidas, corpos sequiosos de prazer e
êxtase, fornicação. Até algumas drogas improvisadas. Isso o fazia ficar
falsamente melhor. Quase viciou-se. Cometeu pequenos deslizes, pequenos
delitos e infrações leves, para não morrer. Pequenos furtos; roupas,
comidas, dinheiro de gente humilde ou não. Assaltou algumas velhinhas
ricas numa escadaria cheia de urina do metrô parisiense. Defecava
ostensivamente em qualquer ponta de bueiro, como se quisesse obrar na
vida, no sonho, no mundo. Já não era mais tão doce, delicado, seguro de si
e ingênuo. Itararé era tão longe, tão dentro como um mantra, quase um
lugar terreal, ou uma mentira na cabeça; fruto talvez da imaginação
doentia. Nem mais pensava, como Albert Camus, "na riqueza infinita da
existência". Tinha-se nojo, com uma espécie de duelo de espadachins cegos
no peito. O inferno não eram os outros? Pensou muito em Sartre quando
dormia em uma improvisada cama rala de jornais velhos, ocasião em que
sonhou com um anjo em forma superior de feto, e parte baixa do corpo de
réptil; com asas de inseto, bicho estranho dormindo num campo imenso de
papoulas. Vagabundeou transido, nos locais famosos da antiga Paris de

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inúmeros cartões-postais, lamentavelmente no momento entricheirada de
descendentes de "pés pretos" (pied-noir - (4), como eram rotulados pelos
racistas franceses os filhos e netos dos fugitivos da guerra civil da Argélia,
na África. Achou a torre de Paris feia, vista com os olhos tristes de um
estranho inútil, sem dinheiro nas algibeiras. O rio Senna era poluído e o
Museu do Louvre lhe era proibido. O "concierge"(5) da portaria tinha
cara de raivoso cão "basset". Na Catedral de Notre-Dame ao rezar e
rever-se com resto de rasa estima, fez uma rápida promessa pessoal,
íntima, até que foi achado por um possesso noviço-vigia e quase foi atirado
porta a fora a pontapés, entre gestos destemperados de piedade cristã e
sonoros palavrões em latim ou grego, não identificou bem. Numa boate
suspeita ainda ouviu o cronner travesti imitar a jovem cantora norte-
americana, Liz Phair, a dizer com forçada emoção mal contida na voz
anasalada: " ...em um lado de mim está o inimigo/A outra metade está
morta". Pensou em se matar. Não iria agüentar aquilo. Como não tinha
documentos, não conseguiu vaga em albergues periféricos do estado. Em
barracos improvisados de igrejas protestantes algumas frias madrugadas
alimentou-se de aguada sopa de batatas, tomates e cebolas. Aprendeu o
linguajar miúdo feito pedregulho de um francês sofrível de pobres rueiros.
De terceira categoria. Era um borra-botas como eles. Conheceu segredos
amargos na rua dos artistas. Aprendeu a dura lição de estrangeiro em
terra estranha. Apanhou de membros de uma turma de classe média alta de
punks neo-nazistas, quando tentou mendigar com sotaque ruim e cheiro de
animal podre. Aprendeu a escolher lixões de restaurantes finos e a tomar
resto de vinho velho, azedo, quase vinagre. Bebia de águas sujas. Sentia-se
um verme. Tinha medo de olhar em espelhos "biseauté"(6) de lojas de
departamentos chiques. Fugia da violenta polícia como o diabo da cruz.
Vegetou. Não teve-se pena e nem piedade. Onde estava aquele jovem e
sonhador de Itararé, um "bon vivant" que na juventude sadia amava os
Beatles e Tonico e Tinoco, lendo Karl Marx e Balzac e sonhando em
conhecer Paris, a capital cultural do velho mundo? Que Deus tivesse
piedade de sua mediocridade.
Foi quando, acidentalmente, num percurso de perambular
feito um trecheiro regular, resolveu por boba curiosidade catar uma espécie de
latinha que vira no chão, ao lado de um pequeno cachimbo de embalagem

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usada de iougurte. Parecia uma improvisada embalagem velha de doce ou
unguento. Abriu-a. Dentro viu umas coisas que pareciam pedras esquisitas,
como se de lascas de cal virgem amelado. Nesse instante ouviu tiros para
cima. Um foco de luz com spot de flash brilhante caiu sobre si. Sirenes
alopradas num cerco de repressão soaram e alguns tiras pesados e truculentos
lhe caíram em cima ali, como lobos sobre a presa, sob a sombra rasteira e
côncava de um bichado "flamboyant". Foi rendido, algemado e conduzido até
uma delegacia próxima. Começou a passar mal e não era só "mise-en-
scéne(7)" Tinha uma banda de música na cabeça, no cérebro. E um bumbo
repetidor no peito entrevado. Queria só uma chance de se identificar
serenamente. Ficou apavorado achando que além de preso, seria morto depois
de torturado, como acontecia muito no Brasil com preto, pobre, prostituta e
comunista, mal sabendo que aquele ainda não interpretado acidente como o
achado de uma latinha (com uns restos de "craks") em seu poder, por
coincidência, poderia, isto sim, até lhe salvar a vida em nome de poderosas e
demoradas orações de sua genitora Dona Jandaia Letoth, que em Itararé sentia
o filhote viajante em perigo, e por ele, de joelhos, debulhava lágrimas em
alongadas orações pertinentes. E se Deus não ouvisse orações de mães, de
quem ouviria?
FINAIS OPCIONAIS
Final Engraçado
Final Fantasia
Final Politicamente Incorreto

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1)-Ao tentarem formalizar o flagrante da apreensão de drogas e fichá-lo,
vendo-o sem documentos (que tinham sido roubados) e sem se fazer entender,
os policiais, curiosos, verificaram pela impressão digital colhida que o
suspeito não era cidadão ou criminoso do Mercado Comum Europeu. Era
questão de "démarché"(8). Então Jean Maria tentou forçar o seu, na verdade,
precário francês e ainda assim mais para leitura que conversa rasa:
-"Brasilé, futeból, Ronaldinho, Samba, Rio de Janeiro; non champignon
de lá Cupe, emigranté de Itararé." Os agentes policiais franceses riram alto, às
gargalhadas, pois estavam acostumados a conviver com vários tipos de
imigrantes clandestinos, e puderam entender quase tudo, menos a última
palavra "Itararé", que é derivada do tupi-guarani, significando "pedra que o rio
cavou/rio profundo, subterrâneo/sumidouro". Procuraram contatar
imediatamente uma Universidade de Língua Neo-Latina, e trouxeram um tipo
raquitico e meio afeminado que arranhava um portunhol entre um caboclo
português provinciano e um espanhol portenho. E que se dizia tradutor não
juramentado mas falando sete línguas, tendo, na verdade, aprendido tudo isso
(e muito mais), na prática, em banhos turcos de homosexuais e bordéis
clandestinos. Logo tudo foi mais ou menos esclarecido. O Embaixador do
Brasil em Paris foi acionado às pressas, recebeu via-Internet a impressão
digital do que se dizia brasileiro e passou, via-fax, ao Ministério das Relações
Exteriores do Brasil em Brasília. Obteve o retorno imediato da Polícia
Federal. Aquele elemento em petição de miséria, mendigo bexiguento e algo
insano ou abirutado na verdade era funcionário público, imposto de renda em
dia, o passaporte com visto correto e carimbo legal de entrada no país; tinha
curso superior, era do interior de São Paulo e tudo mais. Foi feito um boletim
do roubo que sofrera pela horda de miseráveis e Jean Letoth finalmente voltou
para o Brasil, extraditado dois dias depois de trâmites burocráticos em meios
diplomáticos de parte a parte. Mal desembarcou no ardente calor tropical do
saguão barulhento do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, nem sequer
reservando ainda a passagem para a ponte-área para São Paulo, por conta de
uma grana que um adido cultural da Embaixada do Brasil em Paris lhe fiara, e
já ligou a cobrar para Itararé, quase perdendo o vôo de tanta conversa fiada e
espichada, outra vez. Tem cabimento? Não aprendera a lição? No entanto, por
intermédio de um primo advogado contatou o Departamento de Promoção da
Caixa Econômica Federal onde foi inteirado de que, com o contato, tinha ganho
um prazo maior para ir receber a bolada. No vôo para a capital paulista ainda
sonhou que estava conversando animadamente (e tomando Coca Cola diet) com

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Joana D'Arc. Onde já se viu aquilo? Sonhou que tinha entrado numa
concorrência internacional e comprado a Companhia Telefônica da França.
Lembrou Sartre dizendo que não importava o que fizessem do homem, mas o
que ele fazia do que fizeram dele. Era isso, ponderou. Chegando em São
Paulo, depressinha ligou outra vez a cobrar para Itararé - ah o eterno amor de
um grande homem pela sua bucólica e pitoresca aldeia natal! - falou com a
mãe, com os irmãos, com os vizinhos, contou palha de corajoso aventureiro
que se achava. Dizem, as más línguas, que o conterrâneo já de nome
exóticamente afrancesado, em poucos dias que passara miseravlmente
perambulando na França, mesmo ao telefone já esboçava um encardido e
forçado falso sotaque francês de metido a sebo, metido a besta que se tornou.
Até quando dizia acontecências - entre um "en passante" e um "mon dieu" -
vinha o curioso mote decorado: "-Paris sempre haverá, mas Itararé ainda é." E,
encerrando cada papo prolixo com cada um dos tipos curiosíssimos do outro
lado da linha dependurados horas na conversa fiada, reforçava as expressões:
Vive la France! Vive Itararé!
-0-

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02)-Ao tirarem o suposto traficante do chiqueirinho da perua renault policial,
deram com ele em ataque epiléptico de nervoso e perdido. Desesperado.
Levaram depressa para um Pronto Socorro de emergência e então na triagem
médica acharam o bilhete da loteria com o timbre da República Federativa do
Brasil. Estava intoxicado e a convulsão indicava (num laudo imediatista) a
situação delicadíssima em que se encontrava, podendo haver risco de perder a
vida, concluíram os membros da equipe médica que o assistiram preocupados.
Era um brasileiro e a Embaixada do Brasil foi acionada no mal nascer da
manhã parisiense. Não tinha ficha na polícia do Brasil, constataram. Antes
mesmo de ser lhe dado um laudo informando do estado precário por causa do
tétano e da leptospirose em estado avançado, com o fígado algo podre de
cogumelos de infecção generalizada, nervoso e tenso ainda esforçou-se
prudentemente para tentar assinar de própria boa vontade um claro termo feito
testamento peremptório, com testemunhas, quando doaria todo o valor ganho na
loteria para um clube comunitário francês, protestante, que cuidava dos
miseráveis de ruas da cidade de Paris. Levado a um hospital público, ali ficou
em quarentena, recuperando-se aos poucos com medicamentos de última
geração da ciência européia, de alta tecnologia. Foi quando se viu
alegremente acompanhado por bons camaradas da Legião Estrangeira que ali
tratavam ferimentos por causa de apuradas técnicas de combates, tendo feito
amizade por atacado, quando, finalmente, depois de bem recuperado, um grupo
de oficiais o convenceu a embarcar para Aubagne, Marselha, onde poderia
alistar-se também e submeter-se a rigorosos testes de ingresso no grupo
fundado pelo rei francês, Luís Felipe, em l831, com o exército especial então
composto pela escória da sociedade. Pois logo que se viu mal-e-mal
saradinho, topou a nova aventura e em breve estava posudo no Quarto
Regimento Estrangeiro em Castelnaudary, ao sudoeste da França, num grande
agrupamento multinacional de recrutas noviços, em treinamento, logo
conquistando seu quepe branco e partindo para missões internacionais de paz
na República do Congo que vivia uma violenta guerra civil. Lá apaixonou-se
por uma enfermeira croata da equipe da ONU, de nome Beatrix, e que falava
espanhol e francês. Jean-Marie vivia um sonho. Só que, meses depois
infelizmente acabou contraindo malária em exercícios de combates simulados
perto da Serra dos Pirineus, na divisa da França com a Espanha. Só que desta
vez não durou muito, posto que o fígado estava arrebentado pelos remédios
tomados anteriormente. Morreu dias depois de ficar em coma, rendido no

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Hospital Joana D'Arc. O corpo saiu de um morgue esquisito e, conduzido num
vôo intercontinental, em Itararé foi enterrado com honras de herói e salva de
tiros de atiradores do exército brasileiro, vindos do quartel militar de Itapeva,
sabedores de sus postura e regiamente pagos para representar a Legião
Estrangeira. Os vizinhos, os amigos, os boêmios, os conterrâneos
compareceram em peso quando o avião Mirage, contratado pelo poder público
francês pousou no poeirento e precário campo da aviação ao lado do rio
caiçara de Itararé. Era um belo fim de tarde na cidade singela mas, as
andorinhas não voavam como faziam há séculos. Como dizem que quem nasce
no Rio de Janeiro é carioca, no sul é gaúcho, quem nascia em Itararé era
chamado "Andorinha". Pois Dona Jandaia Letoth, a inconsolável mãe de Jean-
Marie sentiu enorme emoção, guardando o doloroso e concorrido féretro,
coalhado de gente. O maior enterro que se vira em Itararé. Coando um café que
moera silente e triste, melancólica, sentiu uma “visita de luz” no peito
alquebrado de nostálgica dor. Olhou para fora de si e percebeu que uma
andorinha solitária e amuada, cantava lânguida e plangente no mais alto galho
florido de pessegueiro que quase que pendia janela a dentro de sua cozinha. E
de seu coração. Meses depois chegou um telegrama de Beatrix, a católica nora
francesa que desconhecia, e que se apresentava a Dona Bartira dizendo-se
grávida e que, em meses, tendo o bebê, o levaria para ser conhecido pela avó e
para ser batizado em Itararé, quando receberia, então, de pia também, o nome
do aventureiro pai, Jean-Marie.
-0-

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03)-Puxando de um francês ruim, precário e quase incompreensível, Jean-
Marie tentou se fazer comunicar. Inútil. Foi fichado como elemento clandestino
no país e levado aos trancos e barrancos à barra dos Tribunais de plantão,
depois, aos empurrões, para o presídio Lá Santé, em regime de cárcere
privado. Foi quando botou os bofes pra fora, deu cilique. Xingou, esbravejou,
teve vômitos. Estava perdido. Era visto como um bandido traficante, num
terrível engano da justiça francesa. Na entrada da prisão, numa placa em
bronze antigo estava escrito - traduziram pra ele: "-Vós, que entrais, deixai
toda esperança. Se Deus não existe aqui dentro, tudo é permitido." Nessa
prisão federal do governo francês, deu alguma sorte, por assim dizer:
encontrou um macabro bruxo português, famoso proxeneta que morara em
Alagoas, no Brasil e até tinha ajudado na eleição presidencial de Fernando
Collor de Mello, ao lado de Abílio Diniz Mário Amato e Valmor Bolam,
comandado o Caixa Três da mala preta da suspeita campanha que depois foi
descoberta, pois o almofadinha candidato eleito (pelo "open-doping" da mídia
atrelada com medo do metalúrgico Lula) quis roubar sozinha e a militarizada
quadrilha palaciana canalha e pseudo-liberal, no poder desde primeiro de
abril de l964, não quis perder as vantagens do bem montado, em camuflo,
estado privado, com corrupção institucionalizada. Com ajuda desses
prisioneiros antigos no presídio, identificou-se, mas o custo era alto. Teria que
dividir o dinheiro da bolada da Loteria entre os mais de mil presos da ala
estrangeira do cárcere, para assim não ser molestado, seviciado, estuprado,
morto. Jean-Maria concordou. Não tinha saída. Foi quando, surpreso,
reconheceu como chefe-caixa daquela seção da cadeia pública francesa,
mesmo com péssimo implante de cabelos, enormemente obeso, barbudo como
um falso messias, orelha de elefantes, o próprio PC Farias todo "rempli de soi-
même"(9). Que, pedindo sigilo a custo da própria vida de Jean-Marie, contou
que tinha sido pego emigrando com drogas do norte do Brasil para a Holanda,
e depois de devidamente encarcerado, movendo as peças importantes de seu
ramo de "famiglia" na máfia latina, preferira usar um sósia para morrer
assassinado em seu lugar no Brasil, como se queima ocasional de arquivo para
enganar a trouxa policia local e encerramentos dos processos que, se
continuassem no enfoque da verdade, cedo ou tarde terminariam no Executivo,
Legislativo e Alto Comando Militar em Brasília. Pois ele se escondia
seguramente ali, cumprindo a pena de dez anos que logo passariam e ele
poderia, com o dinheiro desviado de empresários que elegeram seu chefe
corrupto, fazer uma plástica em Miami e ir praticar câmbio negro e financiar a

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máfia do crime organizado que sustentava o pseudo-capitalismo de araque na
nova Rússia. Esteve também com o terrorista internacional (mas de origem
Venezuelana) Ramírez Sánchez, conhecido como "O Chacal". Que fazia greve
de fome depois de ter sido capturado por agentes franceses no Sudão, e que se
dizia parte dos "mudjahedin" (guerreiros santos) que aterrorizavam
embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia. Muitos anos se passaram,
depois de ter cumprindo a dura pena de seis anos que lhe foi errôneamente
imputada, quando finalmente voltou para Itararé, Jean-Marie já era outro,
triste, desfigurado de si. Estranho. Aleijado por dentro. Bem diferente daquele
cinqüentão que viajara feliz a realizar a viagem dos seus sonhos. Mas,
paulatinamente, logo tudo se refez pelo menos externamente, pois o tempo é a
melhor pomada, e logo Jean-Marie se acomodou aparentemente consolado a
escrever suas memórias de viagens. Passando então a evoluir paulatinamente
no comércio de coisas ilegais, pegando o jeito do ilícito, do incorreto que
aprendera como estrangeiro em terra de espertos; largando o cargo público,
fazendo contrabando do Paraguai, envolvendo-se no narcotráfico, em ramos de
prostituição infantil, jogos de cassinos clandestinos e até filiando-se, - visando
eventual futura imunidade parlamentar que um cargo político lhe daria - num
partido dito liberal-reformador-progressista de extrema-direita. Em regime de
desgosto com a vida, por causa do que sofrera em tempos ruins que tinha ido
ao inferno na penitencia darança, dizia aos amigos do alheio, seu antro de
escorpiões, que tinha feito um pacto com a desgraça e iria semeá-la entre todas
as famílias.
No momento, quase sessenta e cinco anos. Jean-Marie está pensando
seriamente em sair candidado a Deputado Federal. Popular e querido como é
pelos coitados, ignorantes e miseráveis do Brasil, dependentes e analfabetos
políticos que é massa popular de manobra; com a soma do tráfico de
influências, compra de votos e outros braços da máfia nacional que também
chefia em tempos de globalização (onde a violência também não tem
fronteiras), estará muito bem votado, com certeza será eleito com enorme
quantidade de votos populares, de cabresto e de currais eleitorais, tendo tudo
para ter sucesso na vida política do Brasil, agindo bem ao estilo do "jeitinho
brasileiro" de levar vantagem em tudo, a qualquer custo, qualquer preço,
inclusive privatizações-roubos de rendosas estatais, pois fala várias línguas
(que aprendeu na prisão francesa onde também estudou muito, tornou-se menos
ingênuo e mais esperto, algo culto). Tem um brilhante futuro pela frente, com
enorme chance de fazer fama e mais posses em Brasília, e, quem sabe, num

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futuro a médio prazo, acabar até mesmo Presidente da República, bancando um
plano econômico qualquer do FMI, que torne os pobres ainda mais miseráveis,
e a elite dominante ainda mais rica.
(FIM)

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O RINOCERONTE DE CLARICE
"Porque a alma não pode estar possuída da união divina,
enquanto não renuncia ao amor das coisas criadas"
(San Juan de la Cruz)
Tinha tomado anti-depressivos para conseguir pegar no sono,
depois de mais um dia difícil. Estava separada do marido havia cerca de seis
meses, depois de uma ótima relação de quase vinte anos maravilhosos e cinco
filhos. Ainda estavam em litígio na justiça. Três dos filhos ficaram com ela,
aos pedaços. Dois preferiram ir embora com o pai, para Miami. Era mais
chique para as pretensões de interesses deles, adolescentes e também
sonhadores, de coração mole como ela. Os que restaram, cobravam
diuturnamente a mãe que não perdoara o pai querido, que lhe fora infiel num
relacionamento extraconjugal rápido com uma bela aeromoça loira, que o
maldito conhecera num vôo da Airlines para a América do Norte, em vôo de
negócios escusos.
Tornou difícil as coisas. Não queria abrir mão de um lar perfeito,
de um casamento forte e seguro no seu entender, da paixão única de sua vida,
que era Isaías Ferreira, o ex-marido. Um executivo da área de informática que,
além de cinqüentão e bonito, era bem apessoado e de família rica, oriundo de
Itararé, histórica cidade brejeira ao sul do estado de São Paulo.
Não queria acreditar. Passou rapidamente (e sem medir
consequências colaterais) por vários tratamentos. Os filhos que lhe restaram,
via cada vez menos. Mesmo os que moravam com ela, passaram a viver mais
no associaçonismo extra-lar, com os amigos de escola, clube e rua; talvez
entregues ao rock pesado, drogas e sexo, pressentiu. Estava cada dia pior.
Passou a tomar remédios para dormir. Depois, calmantes receitados por uma
amiga cabeleireira de aúreos tempos, quando fazia parte de sociedade e tinha
que se emperiquitar na moda para bailes com o conjunto "Os Marionetes" no
Clube Fronteira, da cidade do marido, onde moraram em bons tempos de muita
felicidade conjugal. A pressão subiu e acabou tomando medicamentos para o
coração também. Que causaram úlcera gástrica. Tudo isso somado a
insegurança, fragilidade.
Estava difícil de se ver só, ainda mais na crise da menopausa. Um
casamento perfeito que dera em nada, e cuja perspectiva de velhice era

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sobremodo conflitante: solidão, sem saídas de emergência. Dera de beber. De
início algumas doses, socialmente, quando ainda não tinha os perigosos
remédios. Depois, como válvula de escape. De uns tempos em diante, depois
que mudaram para São Paulo, químicas e drogas sem controle de tempo,
dosagem, ou administração que dessem segurança no tratamento. Nau frágil a
deriva na vida.
A casa, abandonada. Os amigos do casal, afastados. A minguada
pensão do pai das crianças que chegava com atraso. Os filhos que não via
direito. A sogra contra ela, alegando que poderia perdoar e manter o lar-doce-
lar. Onde já se viu separar-se? Quem ela era? Que se enxergasse.
Mas, como perdoar a fenda viva feito vulcão ativo no peito? Como
confiar outra vez? Não saberia nunca ser falsa. Era dependente do marido.
Jamais pensara numa vida normal sem ele ao seu lado, sua primeira e única
paixão, primeiro amor, primeiro homem, primeiro tudo. Como uma espinha
dorsal em sua vida física, espiritual, íntima. Afetiva. Estava abalada agora.
Maleixa de dar dó. Casa entregue às traças.
Acordou e a testa suada doía. A cabeça parecia estalar rocambole
de cristais finíssimos. O sol já trincava as frestas da veneziana encardida. O
dia ia longe. Barulho de crianças no corredor do imóvel. O estômago
queimava o porre da véspera. Os anti-depressivos tinham feito um buraco
gástrico nas tripas. Sabia que estava com má aparência; as pálpebras pesadas e
ainda algo obesa. Arruinada sob todos os aspectos. Pobre alma pisada. Tensa.
Como perdoar o grande amor de sua vida, seu remo e iluminura?
Polimentos. Abismo de partilha.
Virou-se pesadamente na cama. Preferia morrer do que restar-se
ali em ruínas. Perder tudo o que construíra como uma colcha de retalhos de
sonhos. Deusolivre.
Sentiu-se esquisita.
Medo.
Andava estranha. Além de todo aspecto de constrangida, ainda
muito carente, fechada em si.
A alma partida. O coração como um reles bife seco. E o corpo
entregue.

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Solidão-albatroz.
Sentiu algo no ar. Muito além de um ver comum que reside no
primeiro infinito instante do sensorial, do sensível.
Sondou. Parecia que havia alguém com ela no quarto. Estaria
escondido? Quem seria? Uma intuição precária de presto arrebentou no favo
do seu sentir. Algum filhote rendido de saudade, grude, viera vê-la ou pedir
para pregar um zíper no jeans novo, de grife? A filha caçula querendo um
trocado para o hambúrguer com Coca Cola? Felipe, o caçula, querendo maria-
mole-queimada, mercúrio-cromo ou trocados de dengo?
Catou os óculos de casco de tartaruga na escrivaninha do mogno-
claro, ao lado da cama de casal que antes fora sua liteira de amor e paz.
Lânguida, magoada, sentiu-se fora de eixo. Era a enxaqueca novamente?.
Não achou os óculos. Onde estavam? Com certeza perdera-os de
novo, de madrugada; nas andanças fantasmas como uma louca pelo sujo
apartamento vazio em total abandono. Roupas para lavar, louças com musgo
verde, plantas secas, mortas; filhos ao deus-dará, tudo entregue às beronhas, ao
desdém.
Olhou para o corredor que ligava os quartos do imóvel, com a
sala-de-estar e a varanda. Parecia ter algo na porta. O quê seria? A miopia
era-lhe um problema. Uma luz tênue vinha do corredor, vestindo o meio
ambiente de tom sombrio, amelado. Ao firmar a vista viu que a luz externa fora
truncada pelo vulto de uma sombra que mexia-se com lerdeza, aos trancos,
pesada, truculenta, fantasmagórica. O quê seria aquilo de medonho?
Foi quando estacou naquele bisonho observar, forçando a visão:
Um Rinoceronte estava empacado na porta de saída do quarto,
olhando-a reticente. O que era aquilo agora? - Estaria delirando? - tentou
ponderar confusa. Temeu.
Assustou-se. Medrosamente não fez nenhum gesto brusco ou
movimento rápido que forçasse o ataque daquele bicho cabeçudo e com um
único chifre alto. Não poderia ir à cozinha tomar um copo de água com açúcar;
sequer tentar ir ao banheiro lavar-se um pouco; nem ligar para o Centro de
Valorização da Vida, cujo telefone trazia sempre consigo num bolso qualquer
do pijama amarelo cheirando a urina, vômitos e Valium azedo.

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Mas, o Rinoceronte...ali - seria só alucinação? Estava vendo
coisas? Devia ser isso. Delírio.
Crendeospadre - murmurou baixinho, segurando o temido benzer-
se para não caracterizar risco de ser atacada.
O animal parecia sentir-se a vontade; fazer parte da decoração do
quarto. Parecia saber-se temido, podendo arrancar-se a qualquer momento,
num repentino ímpeto. Estacado na porta, o paquiderme míope de olhar gordo
mirava-a com um jeito de fingido de morto. Bloqueava-lhe ainda mais que a
locomoção: bloqueava o pensamento, o raciocínio, a fuga, o escape de si
mesma. Sentiu-se às avessas. Que animal horroroso, feio, estúpido, horrível.
A janela não podia pular, nem gritar por socorro.
Timidamente acenou com um braço desnudo, em um gesto lento,
forçado, como se a fazer um leve passo falso de ópera seca. O animal bufou,
jogou a cabeça de baixo para cima, bateu as pernas no chão acarpetado;
postou-se firme para medir a direção em arranque de se arremessar contra ela.
Ficou apavorada. Se o bicho ganhasse a cama frágil e baixa, a mataria com
certeza. Ao chocar-se com o móvel iria quebrar tudo, tal o peso, o tamanho, a
violência do arremate, do ímpeto. Estava ilhada. Ficou transida, em desespero
face àquela inusitada situação.
Onde já se viu?
Quem teria trazido o animal ali? Quem era o louco - tentou pensar.
Deveria ser o seu marido. Talvez querendo testá-la para tentar tomar
definitivamente a guarda dos filhos todos. Ele era poderoso, forte, bem
relacionado e sabedor das coisas. Informado. Conhecia o mundo inteiro. Vivia
em constantes viagens. Agora, a razão de ser de sua vida era o seu maior
inimigo. A quem perdera tudo, pois se considerava inferior, dependente,
afetivamente arrasada pela posse e pela inaceitável perda. O que seria de sua
vida? - Estava vivendo os piores momentos para a sua fina flor de
sensibilidade desestimulada.
Recuou o gesto. O Rinoceronte ficou um tempo a olhá-la com
aqueles úmidos olhos graúdos, frios, de torpeza. Temeu-se. Pensava na vida,
nos filhos: em finalmente ceder o anteriormente negado perdão ao marido
infiel, e tentar a todo custo reconquistá-lo. Refazer sua senda. Estava acuada
em sua própria vergonha e intimidade devassada por um animal estranho. Será
o impossível?

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Ficou sabendo da traição por curta carta anônima. Não acreditou.
Era impossível. A letra parecia conhecida mas não encontrou resposta nas
indagações que ainda chocada e surpresa fez para si mesma, enquanto guardou
o estilete da denúncia por longos, tenebrosos e inseguros meses. Um inferno.
Até que um dia, numa dessas discussões que sempre perdera (andava nervosa
por causa da menopausa mostrando vários e repetidos indícios), atirou o seu
amargo saber secreto na fuça do marido. Crime e castigo. Não tinha outras
palavras para contra-argüir na discussão chula, e resolvera usar aquela suposta
intriga. Foi o começo do fim de tudo. Fechamento de um ciclo. Mudança de
estação.
O marido sentou-se à mesa, abriu a garrafa de vinho frisante,
sorveu-se da lasanha com brócolis que era seu prato predileto, e, sem
pestanejar, sem demonstrar arrependimento ou sinal miúdo de remorso, disse
que na verdade já não a amava tanto como há dez anos atrás. Era apenas um
bem-querer, confirmou. Que cinqüenta por cento do casamento agora era de
conveniência e mais por amparo e não causar desilusão aos adoráveis filhos. E
que realmente tivera um caso rápido; umazinha de ocasião, alegou, sem se
importar com a tromba da esposa em pé de guerra.
Como uma válvula de escape, alegou, machista e falsamente seguro
de si.
Continuou: se um dia não pudessem continuar juntos e em paz de
convivência saudável, tentaria com uma outra, até com a dita cuja aeromoça,
arrematou. Tinha coragem, o desgraçado.
Mas foi ainda algo educado e frio como sempre era. Com o fito
precípuo de levar vantagem da situação, pois sabia que ela era eternamente
presa à ele. Rapidamente forçou pedido de escusas contristado; reclamou
perdão por mero sentido de educação, curto e grosso. Negou ter laços afetivos
com a moça, que fora só um incidente de percurso. Que, de uma maneira ou de
outra, queria continuar a vida mantendo a família. Coisa assim. Falou mais por
falar? Era dono da situação.
Deveria ter aceito. Mas, a menopusa.
Quebrou pratos, jogos de porcelanas importadas. Xingou em alto e
bom tom. Ameaçou-o com a faca elétrica. Ele, segurando a surpresa no olhar
parado - descobrindo aquela nova mulher que lhe era estranha até então - ficou
meio apavorado, segurando uma medida maior de susto. Clarice, possessa,
quebrou janelas invisíveis e abriu gavetas mofadas do coração partido. Ficou
louca. Parecia uma. Ele só não se assustou mais, pois se sabia arreio dela;

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mesmo que mal calculando até onde ela poderia ir, ou até onde aquilo tudo iria
desaguar. Dono da situação, apesar de tudo. Mas, na verdade sentiu-se um
pouco esquisito por descobrir que aquela que tinha sido uma santa rainha do
lar, tinha um outro lado sombrio, escuro, selvagem. Perigoso. Nunca
desconfiara essa possibilidade. Vivendo para aprender.
Ela insistiu com palavras de baixo calão. Tocou-o porta a fora e
ele, com a peculiar tranqüilidade de sempre e aparentando dominar a situação
(precisava impressionar os filhos) que se revertera circunstâncialmente
desfavorável, afinal, foi-se embora, de mala e cuia de chimarrão também.
Depois foi, reservadamente, caçando os filhos, os rebentos. Com
lábia, conversa fiada, dinheiro, presentes de bom gosto, invencionices
maquiavélicas e até advogados caros sem escrúpulos. Ficou com os mais
velhos. Ela, com os gurís pequenos que davam mais trabalho. Ele tinha
pensado em tudo. Só não previra que ela sem ele seria menos do que era;
quebraria todas as parcas estruturas, e restaria li, sem eira e nem beira, na cela
suja do seu castelo de areia que antes fora o seu abençoado lar.
Agora aquilo. Um bicho esquisito em casa. O quê estava
acontecendo, de verdade, naquilo tudo?
A cabeça doía. O peito arfava. O coração ponteava bombas
íntimas, lanhos cruciais. E o estranho animal no quarto.
O Rinoceronte de Clarice.
Pensou em gritar. Era temeroso. Pensou em tentar discar para a
polícia (ou seria zoológico?). Mas o telefone celular ficara perto da porta. Era
inútil enfrentá-lo. E depois, nem sabia como. Precisava de alguma ajuda
naquela hora mas não tinha. Era só de si mesma.
Pensou em Deus. Depois deixou a idéia de lado. Não era lá muito
cristã. Pensou em tentar uma intenção prudente de afago no animal, fazê-lo
sentir-se à vontade, mostrar algum domínio. deixá-lo calmo; sentir-se em casa,
como se no seu verdadeiro habitat. Mas não sabia lidar com mais aquele
inusitado problema. Seu marido fazia tudo que exigisse pensar, perigos,
paredes e facilitações. Ela era submissa; ternura, doce, rainha do lar. O
marido, pensava tudo, resolvia tudo direitinho para o bem dela. Para o bem?
Era o maldito vício de dependência afetiva.
Iria ficar para sempre refém daquele animal horrendo a vida
inteira? Estava já delirando. Até morrer de inanição? Ou até que um bendito

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filho abandonado viesse fazer perguntas, reinar ressentimentos, trazer uma
nova caixa de Optalidon? Talvez pedir notícias do cheque do pai, da mesada,
do novo blues-jeans, do tênis importado, do novo CD do Roling Stones?
Estava tensa. Com raiva, com ódio, com tristeza. De ter sido
tolinha a vida inteira, de ter sido usada. De não ter aberto mão de tudo.
Poderia ter seu marido, mesmo que às vezes ele se aventurasse, aqui e ali, com
outra tipa, uma biscate qualquer. Ou não? - estava confusa. Não se reconhecia
pensando assim pela primeira vez, pois que era de uma pureza sem igual; até
casara virgem. Mas agora a situação era outra. Traumatizada com o
rompimento, sentira que sem o lar não era nada e nem ninguém. Sem os filhos
todos reunidos era menos da metade. Sem amigos como os da sociedade
Itarareense, era resto de gente. Sem companhia era aquilo. Zero à esquerda.
E agora ali, prisioneira de um Rinoceronte. Sem forças, com fome,
com medo, inútil. Nem choro tinha para extravazar agora. Sentiu fome. O
estômago sem forro alimentar, curtido.
A cabeça pesada doía. O peito ardia uma semente cruel. A acidez
estomacal queimava, latejando. Começou a tremer de uma febre fria. Deu de
chorar baixinho, espremido, sem som, silente; sem fazer ruído que fosse
motivo de incitar o bicho que invadira sua intimidade, seu último refúgio, sua
toca de ermitã; seu interior. Tudo o que sentira viera à tona agora. Estava
encurralada mas era sensível demais. Tinha que explorar isso para salvar-se.
Vira tudo de outra maneira, com uma ótica nova. Como uma poesia que lera
num jornal da cidade natural de seu marido, de que "só os imbecis são felizes".
Era uma tola mas era feliz? Quisera ser mais do que era. Ser ela mesma.
Perdera tudo o que possuía; sua felicidade. Desde menina nova, orfã de pai e
mãe, largada num horrendo orfanato público, só viera perdendo retraços
particulares pelos descaminhos da vida. Casara até com o primeiro homem que
a usara como fêmea, que lhe dera um curso de vida, um canto todo seu, um
sobrenome bonito e completo, uma família e um palco de mundo onde ela era
apenas uma personagem, que no entanto nunca vira as coxias nem sequer sabia
de camarins ou espetaculares finais trágicos. Tinha imprudentemente jogado
tudo fora. Por egocentrismo ou legítima defesa da honra? Imagine querer
competir com o marido? Ser de igual com ele. Onde já se viu?. Estava perdida.
Precisava reagir. Antes que fosse tarde demais. Devia procurar o
marido, fazer um regime para emagrecer sadiamente, reconquistar os amigos, a
família, a vida social de alto nível. Cativar os filhos. Sabia que tinha talento e
competência para emergir das cinzas. Sabia que não era tarde demais. Tinha

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muito amor por tudo que a cercava, mas precisava de armas certas para
rearranjar de novo a situação. Talvez fazer um tratamento anti-alcoólico,
análise, terapia, ioga, essas coisas.
Armas...
O RINOCERONTE.
ARMAS? - Sim o marido tinha uma na gaveta do criado-mudo que
combinava com o guarda-roupa colonial. Procurou mover-se lentamente, quase
rastejando na cama molhada. Não podia fazer alarde. Era questão de vida ou
morte. O Rinoceronte contemplava-na, como um vigia truculento. A gaveta do
criado-mudo estava cheia de papéis, documentos, aparelhos de dentes, jóias
soltas, selos raros. O Rinoceronte como um pesado móvel estranho, já parecia
assentar-se no vão do seu olhar e ambiente, fazendo parte da paisagem de sua
vida embaçada de tristeza, de melancolia indizível. Até onde a vida alcançava
em desespero de causa e situação de emergência?
Manteve o braço esquerdo esticado, forçando para o fundo o
puxador. Tentou a outra gaveta. Suando, lenta, tensa, conseguiu finalmente
achar a arma. Rebuscou com a mão trêmula de nervosa, e trouxe a pistola
consigo. Sabia que estava sempre armada, pois aquele era o móvel do lado da
cama do seu marido. E ele a mantinha sempre ali, dia e noite, engatilhada. No
fundo era insegura, frágil, covarde. E esquecera de levar no dia que se
desfizera dela; dia de perdão que ele até insistira, tentando consertar o rumo
das coisas, numa situação constrangedora. Perdão que ela, arredia, negara,
ingrata, insegura, inconseqüente; de só pensar em si mesma, não nos outros da
prole, do ninho.
Trouxe a arma para perto de si. Com jeito. Sem dar na vista. Sem
sequer teimar em querer mero gesto curto.
FINAIS OPCIONAIS
Final Fatal
Final Feliz
Final Realista

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01)-Nervosa, trêmula, tensa, trouxe a pistola para a outra mão, menos afetada
pelo destempero do descontrole emocional. Com as ambas as mãos crispadas,
segurou o mais firme que pode a arma. Mas as mãos, com o peso da primeira
responsabilidade e dado ao impacto psicológico do primeiro ato legítimo de
sua própria lavra, estranhamente pendiam para si mesma. Tentou controlar o
nervosismo. Precisava ser firme. A testa suava. Súbito, sem medir direito o
rumo da mira e atirando mais por atirar - como se fruto de um desencargo de
consciência - achou que finalmente tinha acertado aquele animal enorme que
parecia então avançar em sua direção, como se já estivesse colado em
arremate bem próximo dela. Num primeiro instante e ao soar dos estampidos,
ela entendeu ter atingido o alvo; ter matado o bicho. Apesar do exaustivo
desgaste, de tanta insegurança, fragilidade, frustração quase medo criando
coragem louca. Tanta pressão que sentira agindo numa situação difícil
daquelas em casa. Era a primeira vez que tomava uma decisão importante, e
que tinha decidido por idéia de iniciativa toda sua. A única vez que por si só
tivera uma atitude de pessoa normal, de reação, de mulher corajosa, de dona
da situação.
Casa?
DESMAIOU.
Acordou tempos depois, sem ter medida da situação ou das horas.
As janelas abertas mostravam um alto céu azul-escuro. Os filhos
todos chorando ao lado de sua cama. O médico com seringa na mão dizendo
baixinho que não tinha jeito. O Síndico se recriminando por ter chegado tarde
demais, muito tarde. Tumulto. Burburinho. Soluços. Coisarada que não
identificou direito. Assustou -
Viu-se: não acreditou.
Estava ferida com buracos de tiros no ombro enfaixado, com marca
vermelha feito mapa na blusa creme, e também havia marca de sangria,
curativos e torniquete perto do coração atingido. Iria morrer em poucas horas,
por causa da hemorragia, disse o médico enviado às pressas pelo pronto

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socorro do emprego do ex-marido que chorava convulso abraçado à filha
pálida de susto.
Foi quando entendeu, pela última vez, antes de morrer, que atirara
em si, e, infelizmente acertara.
Finalmente compreendeu tudo: ela mesmo era o próprio
Rinoceronte.

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02)Quando se preparava para, controlando o nervosismo à flor da pele, tentar
fazer mira no Rinoceronte, alguma coisa ou alguém como se espetacularmente
desligou o animal, num mero clic, ocasião em que acenderam-se todas as luzes
de sua vida. O quarto clareou. Seu filho mais moço que morava com o pai em
Miami, de repente surgiu à porta e, ao ver a mãe de revólver em punho,
pensando que ela iria se suicidar, aturdido, feito um aloprado, gritou ardido o
mais desesperadamente alto que pode. Foi uma loucura. Janelas romperam
aberturas, gritos de preocupação se ouviram como em ecos, portas bateram
nervosas, o zelador correu acudir, o Síndico compareceu e em segundos tudo
se esclareceu. Clarice, já sem a arma, abraçada com o assustado filho em
soluços, explicou quase tudo. Isso, dentro da medida do possível, pois, afinal,
não havia animal algum, concluiu. Teria delirado? Seriam as misturas da
químicas dos remédios? Contataram o ex-marido que prontamente se
prontificou a interná-la. Amava-a ainda, concluindo que exagerara no
comportamento da traição e na dose exagerada do rompimento. Voltaria para
casa. Tentaria reconquistá-la, depois de um tratamento para total
desintoxicação numa clinica especializada de Itapetininga. Em poucos meses
depois, o lar estava refeito. Clarice ganhara seu round de luta por seu espaço,
uma opinião própria, sua parcela em poder de decisão. Aprendera na dor.
Foram felizes novamente. Clarice, a partir de então, sempre que ouvia falar de
um tal Rinoceronte, não achava que de todo o delírio ou pesadelo tinha sido
ruim, pois, afinal, tinha o aconchego edificante de seu lar de volta. Passou a
simpatizar com o bicho, até fazendo, para futuros Carnavais, fantasias de
Rinocerontes para toda a família, usadas depois em festejos do Rei Momo, de
salão, que passou a varar Fevereiros de férias, quando estava alojada na casa
de veraneio que mantinham na estância de Itararé, terra de seu marido, aliás, o
Rinoceronte-Chefe da família. Que agora não mais precisaria urinar ou defecar
para marcar território de domínio, já que naquele lar não mais havia posses ou
donos da verdade.

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03)Foi quando levou, subitamente e dentro si, um enorme susto de aviso. Um
choque interior? Alguma intuição materna dentro de seu mais íntimo e sensível
"sentir" anunciou presença de perigo pra algum filhote. Largou a arma sob a
fronha com marcas de babas antigas, catou da gaveta superior do criado-mudo
e, usando-a como instrumentos de ataque, gritando alopradamente partiu para
cima do maldito intruso do Rinoceronte. O bicho, como um fantasma
embaçado, logo se esvaiu num átimo de milésimo de segundo e então Clarice
piscou, como que se acordando de um pesadelo. Correu acender a luz. Ali não
havia nada. Apenas uma mochila grande com roupas sujas de sua filha mais
nova, Ana Flávia Carolina. Correu atrás da menina que devia ter vindo de
Miami dias atrás, lembrou-se. Foi encontrar a filha caçula dormindo no sofá-
creme da sala, com os olhos virados e como se com cabeças de alfinetes nas
pupilas. Sofrendo um golpe, um tranco no que vira, de presto Clarice assustada
discou um número de emergência, chamando a ambulância. Sentiu que estava
perdendo a filha, que vivenciava um espasmo de crise por causa, talvez, de
uma overdose de drogas, ou coisa semelhante. Enquanto se arrependia de ter
sido péssima mãe, negligente até, fazendo promessas feito louca - levou um
tranco - ligou para o número do marido em Miami. Descobriu que ele tinha
sido pego fraudando o Imposto de Renda dos Estados Unidos, estando também
envolvido com lavagem de dólares do narcotráfico sul-americano. Ficou
sabendo que os filhos estavam embarcando para o Brasil, onde ela os teria de
guarda, conforme decisão da Suprema Corte norte-americana, por interferência
do FBI e da Interpol. Quando o socorro chegou, a filha Ana estava ainda fora
de si. Foi levada ao hospital, sofreu uma lavagem estomacal e foi sedada. A
menina, abandonada pelo pai que sumira de circulação, chegando de
madrugada em casa e vendo a mãe sempre em agonia, a dormir feito uma louca
ou beber feito uma idiota, revoltada e sem amparo, infantilmente decidira, em
depressão tomar - agoniada e com baixa estima - uns remédios que achara no
banheiro, misturando-os, tentando pôr um fim àquilo tudo que começara com a
briga fatal dos pais e o divórcio que ainda se estendia em juízo, com
apelações, baixarias, recursos e tudo mais, com ela e os irmãos todos sendo
usados de parte a parte, com mentiras, alegações bobas, martírios e desgastes.
Clarice prometeu mudar. Jurou, orou, chorou. Foi em busca dos demais filhos
que logo chegaram no aeroporto e até a estranharam novamente prudente,
meiga e prestativa. Era a mãe de novo à tona. Depois que Ana Flávia foi dada
como fora de risco, Clarice, saradinha, voltou para Itararé com toda a prole
completa. Lá, tenta refazer a vida, reconstruir o lar sob sua égide, mudar o

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curso de seu rumo antes louco e inconseqüente. A filha está namorando um
rapaz de boa índole da cidade, os meninos jogam futebol compondo o time de
aspirantes do Clube Fronteira. Clarice depois de tantas voltas; idas e vindas,
erros e acertos, aprendeu a lidar com o benefício de sua solidão saudável, e
também começou a pintar belos esboços de telas impressionistas modernas. O
problema é que os amigos simpatizantes, reclamam e criticam que ela sempre
trabalha abstratamente o mesmo ícone-animal, visto sob diversas releituras nas
artes plásticas. O mesmo Rinoceronte que, agora, ela carrega consigo na
memória e no inconsciente também. Como uma espécie de talismã que a
impeliu a fechar um ciclo de vida e abrir novos limites onde, então, busca um
céu de verdadeira felicidade para sua esperança.
(FIM)

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CEBOLA
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O velho guarda-noturno capenga e sua perna manca,
torta desde o fêmur. Ainda úlcera-varicosa por causa do andarilhar penso
fazendo ritmo com um repetido pigarro surdo. Três maços de cigarros da
marca Aspásia por dia, um pedido quebra-peito de lascar. Pele oleosa, face
parda, bigode ralo e fino como se feitos ligeiramente de borras de café.
Viu quando aquele tipo bem apessoado, de chapéu de
feltro e tudo, abriu a portinhola do piso superior do sobradinho conhecido,
catou a muretinha marrom de ferro trançado, forçou o peso para baixo ao
pender-se, e caiu de um pulo só no jardim. Onde se viu aquilo?, matutou,
ensimesmado.
Depois, o estranho tipo, ainda meio que temeroso (e,
furtivamente), abriu o portão central da residência - com a chave! - e ganhou
apressadamente a rua. O quê estava acontecendo?, cobrou-se, pasmo.
Muitos minutos depois é que o Bráulio - após cismar
aturdido - lembrou-se que era o Vigia daquela rua e, portanto, deveria ser
também vigia da situação esquisita que de perto vira. Poderia sim, ter dado o
alarme, promover uma gritaria, soprado o apito de guarda-noturno, até mesmo
ter atirado para cima, pedindo conhecimento do curso todo que vivenciara na
sua timidez de raciocínio curto.
Mas cuidou-se de atinos. Era precavido demais. Frio,
temperado.
Se era um estranho na casa do dr. Lindauro, como
poderia ter a chave do portão de entrada? E ainda muito bem vestido?
Empacou o questionamento-quirera, nunca meia porção de pensamentos
descosturados de possibilidades.
Pulga atrás da orelha.
Ali tinha coisa, matutou. Não fazia sentido, aduziu.
Cismou alhures.
Na outra noite em que fazia a ronda cotidiana, no
mesmo turno de havência, apreciou demoradamente o lugar. Nada. Nem nos
dias que se seguiram. Cotidiano trivial.
Mas ele de quase tocaia, sondando melhor um novo
haver daqueles. De butuca.

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Numa outra feita viu.
O cidadão bem vestido, terno, paletó, sem gravata mas
com chapéu tipo Ramenzoni, abria a porta de cima, interna, do sobradinho com
telhas goivas alemãs, com chaves próprias, pulava a mureta gradeada e caía no
jardim de hibiscos vermelhos, brincos-de-princesa e açucenas-brancas,
recebendo os confetes do suór noturno. Abria o portão de tramela de ferro
fundido - tudo em magistral silêncio - e depois ganhava a rama da rua e
adjacências. Sim, era isso, sem tirar nem pôr.
Uma, duas, três vezes flagrou. De camarim. Não
acreditando. Será o impossível?
Larápio não era, que nem carregava guarda-chuva ou
reservado butim de trouxa.
Havera de ser com ele, resmungou com tromba e
sisudez de arrimo no ego.
Mas não.
Por certo a mulher do dr. Lindauro estava com "cacho"
de desfrute. Um causo sério, a caipora.
Está certo que o casal beirava aos cinqüenta anos. Que
o dr. Lindauro, professor de filosofia aposentado tomava todas e mais algumas
(rabos-de-galo no Bar do Seu Calixtrato); onde tinha fiado de "pindura" - mas
era demais aquilo.
Entregar? Necas. Não era dessa laia de Joaquim
Silvério que dedurara o Tiradentes da Inconfidência Mineira. "Nem por força."
"-Em arranjo de marido e mulher, curioso porqueira
não bota a colher", arremendou o adágio popularesco. Credo-em-cruz,
corrigiu-se, fazendo depressinha o, "pelo-sinal"
Mas a curiosidade machista ganhou raíz. A "guampa"
era do dr. Lindauro, mas o guardião deveria ser ele. E entrevou-se algo
temeroso em mil conjecturas. Desde os tempos do arco-da-velha que ouvira
falar em finais trágicos de situações semelhantes, de-assim.
Sondou outras ocasiões. Era uma vez por semana.
Variado, sortido. Sem dia certo exatamente. Sem se repetir na semana. Coisa
do dianho, ara.

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Uma noite, que não estava de serviço, vindo da
Quermesse do Divino Espírito Santo, lados da Serraria, coincidência ou não,
deu de frente com aquele homem, indo meio que assustadiço; bem rente às
paredes das casas, para ganhar a cor fúnebre e o encorpado camuflo das
sombras noturnas vestidas de frágil breu entrecortado. Furtivo que só vendo.
Passou batido, ché! Que tipo! Pensou em pinchar
ligeirinho um grunhir ousado de cumprimento. Um "tétrodia" que arrimasse elo
de presença notada. Dar um teco de conversa fiada que fosse, sem querer
identidade ou dar pito. Não houve tempo.
O sujeito, de belo paletó apertado e chapéu enterrado
nas fuças, passou chispando como foguete, feito estar com o rabo entre as
pernas. Era bem fortinho, algo musculoso, reparou de imediato. Seria bom de
briga o senjeito? Ficou se encardindo de ódio na caixa do tronco maleixo de
tanto cigarro quebra-peito. Era o vício que dava dolência quando nervoso ou
contrariado.
Foi em frente, mas a curiosidade "caipora" tinha
viçado. Aquilo tudo ainda mexia com ele, dava nos nervos. Pressentia que não
ia acabar bem. E ainda podia sobrar para ele.
Na semana que se seguiu, vigiou todos os dias. Na
outra também fez marcação cerrada, sob pressão. Até que num final de semana
acertou na mosca. No horário e na data. Tudo se repetiu e então seguiu de
longe o amante da esposa do dr. Lindauro, a matusquela da Dona Nicotinha
Lupion.
Dona Nicotinha tinha vindo ainda mocinha para Itararé.
Inocente e santa de tudo. Uma judiação de pouco mais que menina.
Tinha sido um casamento mais ou menos de arranjo,
por assim dizer; a cidade ficou sabendo tempos depois.
Ele, dr. Lindauro, ainda na flor de juventude, ao fazer
uma viagem para pesquisa de estágio de sociologia, numa cidadela do interior
caipira do Paraná, conheceu a família de polacos cor de mandioca que - por
terem ido com a fachada simpática e firme lá dele - ofereceram (como se para
livrar do encargo) a filha encalhada, Nicota Stravinski. Quase com uma liturgia
de entrega, por aquela espécie de refugo familiar que não produzia nem para o
sustento próprio, tão delicada, fina, sensível e variando de só ler e estudar
feito uma molenga que era, cheia de alergias, com medo de feridas por causa
de esporos, ácaros, pó de terra.

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Depois voltou numa outra viagem de férias, e ficou na
mesma pensão dos Stravinski, pelos quais também norteou empatia.
Ele "gamou" pela cor benta da menina, pelos cabelos
castanhos-claros cacheados, pelos lábios finos cor de amora, pelos pequenos
seios como pêssegos, pelas ancas de ninfeta, pelas pernas bem torneadas,
pelos graciosos olhos azuis, pelas grossas sobrancelhas crespas. Foi quase
amor a primeira vista, se a família disfarçadamente interesseira não cobrasse o
ceder paulatino em prestações. Mas, com visão mais racional do mundo a fora,
o jovem Lindauro ficou de ver; regateou com delicadeza, enrolou papo para
depois tomar tino. Ficou de pensar, pôr reparos melhor. Resolveu de dar um
tempo a sós para si, tapando o sol com peneira, pois o coração estava fisgado,
tapeando intenções.
Anos depois de formado, depois de trocar cartas,
mandar presentes, telefonar e mesmo dar umas escapadas com visitas
rapidinhas para sondar a mocinhola, que crescia, ganhava peso e firmeza no
corpo; sem eira e nem beira que o amparasse num canto ou para tocar a
trabalhar naquilo para o qual era habilitado com diploma e anel, antes de
retornar para Itararé, sua agreste e encantada aldeia natal, dar aulas sobre
Sócrates e Platão, tendo sobre este último escrito uma tese embasada no Mito
da Caverna, foi conhecer melhor e de vez para sempre a guria como diziam na
região onde encalhou intenções. Quis sapecar interesses, sondar atinos, somar
quereres, ver as perspectivas da possibilidade de aprumar-se num casório.
Estava bonita a Nicotinha, bem feita; "pedaçuda",
ralhou-se, coração pondo um céu na esperança de juntar os trapos. A própria
família tinha dado uma melhorada financeira, com uma madeireira de gringos
atuando na cidade, correndo grana fácil, com a Pensão Pés-Vermelho da
cidade de Nossa Senhora das Dores do Bom Parto ganhando uns cobres fáceis
e até seus proprietários recebendo pagamento em dinheiro estrangeiro de peso.
A família recebeu-o como se fosse um anjo Visitador,
tão querido era apesar dalgumas promessas ao sol e da lábia que vinha
passando com jeitinho manhoso.
Bateu o martelo. Levou quem trouxe. Fizeram o
casório. Com sanfona sete-baixos, viola rueira e forfé que emperiquitou a
pracinha defronte a pensão. Juntou poloneses até de fora da cidade, região e
país. Tudo regado a músicas folclóricas, xotes, polcas, comidas típicas como
cuques e danças tradicionais. Um forrobodó e tanto.

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Casado, ainda no rente das quantas mazurcas e cidras
espumantes caseiras, bandeou-se de mala e cuia para sua cidade de origem,
Itararé, onde, com o passar do coador do tempo, trabalhando feito um bode
velho, fez carreira, ganhou respeito, grana e zelo pra se arrumar na vida. Três
filhos homens e duas meninas, todos formados e morando por ali mesmo, na
região, bem feitos na vida.
Bráulio, o vigia noturno, seguia o curso pensando
nisso, conjecturando simplório; pensando no amante que se envolvera naquele
que pensara ser um lar feliz. Onde já se viu - tentou meio que contra-
argumentar, a mão direita coçando uma oxiúrase - a Dona Nicotinha arrumar
sarna pra se coçar, depois de velha, apessoada?
O tipo estranho virou a rua, entrou num barzinho. Uma
bodega alumbrada de gente saindo pelo ladrão.
Ele atrás.
O estranho seguido ficou só olhando um tempão,
depois pediu uma cerveja, tomou e foi-se sem mais nem menos. Não antes se
mostrar encantado com o fuzuê da fauna notívaga, a famosa nata da boemia de
Itararé.
Como já estava tarde, a lenha da noite acirrando o
bodoque fogoso das horas, o guardião Bráulio ficou por isso mesmo. Deixou
de seguir para ver quem era o tralha, onde morava, que bombardino de
propósito tocava, essas coisas.
Dia seguinte tinha batente. Era de fazer bico na
Serraria Redentora do Ambrósio Tatit, nas horas vagas. Ganhar uns
caraminguás por fora, empreitando madeirame nas tupias e serras-fita.
Outras vezes seguiu.
Ou o amante de Dona Nicotinha entrava num barzinho
qualquer, animado de dínamo etílico, caçava um canto e se embebedava como
um gambá, assistindo as insofrências do derredor alivassareiro, ou ficava
vagando pelas ruas de cacau quebrado que eram chamados os paralelepípedos
de magma em noturnos de lua; noites belas. Parecia meio esquisito e inseguro.
Ou até mesmo entrava numa boate e, idem. Mesma
coisa de sempre. Bebia e só. Como uma sina, um ritual de fuga, válvula de
escape. Arrependimento? Ali tinha dente de coelho. Às vezes o tipo parecia
melancólico, nostálgico, meio que desfeito de si, em polimentos íntimos a
esconder um choro temporão, lágrimas furtivas que escondia no bojo da mão
rápida. Além de sem-vergonha, era manteiga-derretida?

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Um dia entrou num restaurante de beira de estradinha
vicinal que adentrava a cidade. Outra vez na Churrascaria do Alfredinho onde
tinha televisão ligada passando Copa do Mundo. Até vibrou meio sem jeito
com um golaço do Tostão. Outra vez garrou um ensaio geral da Escola de
Samba "Unidos da Frigideira". E teve até um baile de Normalistas com o
conjunto "Os Marionetes", para não dizer de um forfé num clube de terceira
categoria, de baixarias. Tipo guaiú de zona de meretrício periférico. Mas não
caçou dondoca qualquer.
Entrou, campeou mesa discreta num canto. E ali bebia
sozinho; às vezes fumando mal de tossir desajeitado, às vezes caçando de um
grosso caderno espiral e garrando a escrever demorado, virando páginas,
limpando os olhos que umedeciam intimidades revisitadas que fossem. Lia,
escrevia. E um cerveja gelada atrás da outra. Depois de lanhar-se, lendo-
escrevendo, procurando drenar pegadas interiores, fazendo a alma respirar
pelo aventado purgar do fazer poético, pagava e ia-se. Quando não comia uns
tira-gostos, lanchando polido. Ou dava-se a escrever horas a fio feito um louco
querendo se livrar de alguma coisa, como se de invisíveis naus de ícaros
secretos.
Curiosidades com sementes.
Nunca dava certo seguir o sujeitinho, para ver aonde
iria depois do porre; para sondar quem era, de que redondeza, família,
profissão, arremate de intenção e tudo mais. Cidade pequena cria rótulo fácil.
Em casa de cangussú, nhambú não pia? Era isso.
Simpatizando com aquela rotina noturna, até tentou se
aproximar, dar trela. Um olá, um barulhar, um tiau, coisa de-assim. Talvez
serrar um cigarro melhor, um Cápri de carteira vermelha que o disgramado
ousava de pilotar feito uma chaminé desacostumada. Não tinha jeito, costume.
Não era do ramo ter esse vício fumacento.
Só queria era levar um dedo de prosa. Saber as
acontecências, sem tardança.
Olhar de frente pro feitio do sujeito e pedir explicação
formal.
Mas, ou estava desprevenido de gaita para dividir o
desboque da gastança, ou o preço da baiúca festeira era de matar; alto pro seu
minguado salário e seu padrão chinfrim de vida mesmo na situação que
investigava. Ou mesmo nem tinha espaço livre por perto do sujeito entrevado
no cismar alhures. Mas o tipo abria seu caderno já maleixo de desespelhos, e

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escrevia como se bulas de azenhas íntimas. Escondendo tristezas de quem, o
disgramado?
Medo arando que o tipo sondasse de pôr desconfio.
Perigo.
Orelha em pé. Descascando percepção, fatia de instinto
apurado, intuição maria-mole.
Um dia não agüentou. Deu o cano; deu o "pialo" no
serviço. Mandou o gurí caçula avisar que estava com bugreira brava; que tinha
pego num sítio perto da Fazenda Enxovia, de um conterraninho crente, onde
fora buscar marolos silvestres para licor caseiro.
Não foi trabalhar mas fez bico, resolvido a pôr tudo em
pratos limpos. Era guarda-noturno ou alcoviteiro?
Sorte.
O amante da mulher do Professor fez a "via-crucis"
etílica do desentrave. Era dia de traição, choro e ranger de dentro.
Agradeceu, fervoroso, a Cosme e Damião: beijou
espandongado as medalhinhas. E picou a mula.
Bráulio atrás igual boi tinhoso lambendo cria nova.
Sem tirar nem pôr.
Beronha querendo grude. Untando betume de cerceio,
no cerca-lourenço da ocasião.
Trem de carga e carro-chefe. Lesma e gosma de si,
trilha.
Num bar que antes já tinha ido, o sujeito desenxavido
aportou.
Fumou sem jeito, bebeu estouvado, escreveu
quinquilharias de guirlandas íntimas, feito um balancete de ficção-angústia.
Estaria no débito? Parecia enluado o porqueira de uma figa.
Seria um amante deveras apaixonado, o traste?
Parecia, às vezes, que era meio frouxo. Feição de cusarruim, estrupício. Algo
não fazia sentido; mas não atinava de decodificar o que realmente era.
Um romântico fazendo poemas apaixonados do caso
proibido? Tudo era possível. Aquilo estava esquentando, ficando interessante.
Parecia novela da Rádio Mairink Veiga ou folhetim de cordel matuto.
Prá lá de "melhor de bom", acrescentou consigo
mesmo.
Ficou por perto. Era teimoso como o diabo.

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Corvo e carniça farta. Carrapato querendo gordura de
anta obesa.
Pegou cadeira de palhinha e pediu rapidinho uma
gasosa de framboesa. Até pitou seu quebra-peito fedido mesmo. Curto e grosso
para não dar na vista ou dar-se a ver-se em exagerado gesticular. Cuidava-se.
Precavido.
Repetiu. Dinheiro ciscando na mão, para o caso de ter
que sair num repente, enveredando atrás do distinto e perder o ramo da
havência, o fio da meada. Ficou cismando bulha de inquietação a sondar o
bicho acuado sem sentir e saber. Era melhor assim, mais seguro.
Pagou, preocupado.
Ficou depois na esquina da rua Prudente de Morais
com o boteco lotado.
A lua minguante parecia navegar entre nuvens imitando
cisnes alvos. Céu de porcelana entintada de maravilhoso azul-piscina.
Bráulio na pauta da expectativa, farol ligado.
Saíram uns capiaus arigós ervados do lugar
concorrido. Ruideza de jovens espeloteados. Esculachos no desboque dos
preços. Faziam chistes em polvorosa. Botavam a boca no trombone.
Um, de pá virada, xingava a mãe do dono da baiúca
careira.
Qual.
Até que num mal de repente, surgiu de paletó
riscadinho e chapéu bem encravado na cabeça, aquele a quem ele dera atenção
para saber o vinco das acontecências. Ligou-se. Estava cansado daquilo.
Colocou o pé no coturno onde um joanete latejava o preço da campana. E uma
bereba imaginária coçando na virilha. Tique nervoso.
Cortou uma ruela.
Ele atrás.
Virou uma esquina.
Ele, silenciosamente junto, como o famoso personagem
de gibi, Flecha Ligeira, caçando o índio Cabeça de Búfalo, bem disfarçado de
intenções, entre postes, mourões, ipês e beirais de casas ensombradas.
Subiu um aclive. Ele no rente. Pé ante pé. Pisando em
ovos, sem fazer respingo de barulho.
Beirou um campinho; ele no atalho vigiou a sua
desconfiança de caçador no calcanhar da caça furtiva.

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Engraçado, estranhou.
Parecia que o cidadão filho-da-puta estava fazendo o
caminho de volta. Tongo, não se tinha inteirado do percurso que era o mesmo
da vinda. Ué?
Onde já se viu?
Verdade.,
Estava indo por onde viera horas antes.
Eram quase onze horas da noite. Agora, um beiço pré-
auroral de quase quatro da manhã.
Mato e coelho.
Percebeu.
Será que o lazarento tinha se esquecido de algo que o
incriminasse? Tudo era possível no cenário do amor.
Uma pista: uma acha qualquer de fósforo queimado que
o comprometesse em tragédia?
Torrão de bom-bocado? Pista de esconjuro?
Botão de barguilha solto? Lenço de morim-cambraia
como prova do crime?
Meia cerzida?
Maria-mole-queimada? Bala paulistinha azeda?
Resíduo de consciência pesada?
Pito?
Credo.
Ou estava corajosamente retornando com as quireras
de nuances da luzes da aurora; com o amanhecer depressinha lixando a pele
nua da noite, para aprontar alguma desfeita? Desfiar o novelo do caso? Levou
quem trouxe.
Voltara para dar a "saideira" depois de ter mamado
cerveja feito um gambá? A peleja revisitada no sexo em grau de núcleo de
abandono?
A última por conta? Quem sabe iriam fazer um pacto
de morte?
O quê estava acontecendo, afinal? O peito tamborilou
um elástico no dentro e quase se traiu, tossindo fino.
Temeroso da surpresa que vivenciava, empacado,
pensou a arma branca no bolso da algibeira da calça calhambeque, entre
paçoquinhas desfeitas pela correria e a identidade-mãe.

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Dito e feito.
O tipo abriu candidamente o portão. Em silêncio.
Pendurou-se com jeito rude numa trepadeira-primavera que quase relou peso.
Parecia acostumado.
Galgou a mureta sem fazer gomo de bulha. Pulou liso,
ágil. Sem estremelique de dar-se por intruso.
Abriu a porta de leve
...entrou.
Com a chave pronta na mão já para fechar por dentro.
Viu, silenciosos infinitos segundos depois que suava
frio, a luz do banheiro superior da casa do dr. Lindauro acender-se. Um
tiquinho. Depois um pingo de clic imaginário e só.
Descarga.
Apagou.
Um primeiro galo-carijó cantou o tecer da manhã
Itarareense.
Em seguida, um conhecido sininho roufenho de
carrocinha de padeiro indo buscar entregas, tilintou batendo cartão pontual
numa rua descalça ao longe. Um jaguara de cão ordinário latiu curto e um outro
Vigia amigo seu, compadre até, pigarreou se anunciando serelepe e feição de
entojo.
-Lubisomeando, Cebola? Era esse o apelido de
Bráulio. E tascou: -Você não estava doente? O quê é que está fazendo a essa
altura das horas na rua? É o pigarro estrupiciando no peito? Faltou o tabaco do
maldito vício? A Zildinha, minha querida afilhada, sarou das bichas? O
boticário de plantão é noutro bairro, seu feição de brucutú!
Braúlio contou tudinho. Lavou a alma.
Sem tirar nem pôr que não era do feitio dele. Do
começo ao fim, com riqueza de detalhes. O gordo compadre Ludovico
apelidado de Batata, era de confiança, falava pouco e pensava menos ainda.
Tinha raciocínio lento de paquiderme e sensibilidade de assento de privada,
diziam os gozadores amigos de farra, de malha, de jogo de tranca e pescarias.
Mas era forte como ninguém. Um touro. E fã do Éder Jofre, campeão muundial
de boxe.
Juntos, combinaram de esperar pra ver.
A casa vigiada deu de abrir janelas lá pelas oito horas
da ardida manhã, pondo cortinas de felcro para fora.

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Não foi nem um farol de converseio, e o dr. Lindauro
saiu de pijama zebrado em busca do jornal matutino embaixo do portão caseiro
de cedro. Quase tantas das dez e saiu a Dona Nicotinha toda fofa rumo à feira,
com sua sacola de plástico, encardida por um amarelo com ceroto de uso
diário. Um xale xadrez de lilás e creme sobre os ombros largos, e o rabo-de-
cavalo armado com despreparo no alto da nuca.
Disfarçaram.
A dona algo obesa passou, reconhecendo-os,
cumprimentou rápida, sorriso de melancia na face entristada e foi-se dois-por-
dois.
Ali tinha era dente de Capivara, disse o Cebola ao
Batata. Salada.
Porcaria mesmo.
Será que o amante da patroa do dr. Lindauro morava
no mesmo canto? Isso era inadmissível no contexto todo. Que rebuliço de
caterva era aquela?
Promiscuidade.
Ou o dr. Lindauro era dos mansos. Havia de ser.
Talvez por não mais dar no couro, dado ao avanço da idade.
A sociedade cristã não podia aceitar aquilo. Era um
pecado e tanto. Deus castiga.
Deusolivre e guarde!
Resolveram: juntos iriam seguir o dito cujo e
desvendar o mistério de uma vez por todas. Faziam questão disso. Era mesmo
intenção de honra.
Acabar com aquele triângulo sem-vergonha.
O dr. Lindauro não merecia o desdém daquela caipora.
Onde dependesse deles, ela iria dar com os burros n'água. Que esperasse.
Ia ver só.
Ficaram por muito tempo sapeando quireras de prosa
avulsa por perto. A polenta tinha azedado pro destino dela.
Numa sexta-feira deram com o sujeito saindo. Terno
combinando, sapatos largos, camisa Volta ao Mundo, chapéu de feltro marrom,
igualzinho um que o dr. Lindauro tinha e usava sempre.
Esperaram que se afastasse de casa. Era melhor.

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Queriam evitar tumultos, possível fosse, ou surpresa -
para o caso de precisarem usar de violência - e eles terem que, enfezados,
partirem pros pés-de-ouvidos certeiros na fuça do canalha desfeitor de lares.
Medo criando coragem leviana.
Não queriam escândalo. Não era do feitio deles, meros
guardiões da moral provinciana de Itararé.
Dois homens prevenidos valem mais que um cabra
sem-vergonha. Esperasse pra ver, o trambolho.
Numa esquina mais sombria, perto de uma figueira
carregada de frutinhas maduras feito pitos acessos, deram a ordem imperativa
em alto em bom tom, em improvisado estilo caipira:
-Páre aí, por favor. (Bráulio, o Cebola.)
-Alto! Mãos ao alto ou atiro! (Ludovico - o Batata,
mais dengoso e pilha curta)
O topetudo parou, voltou-se não os encarando de
frente.
-O que desejam? Murmurou em voz pequena e macia,
curto, grosso e rouco. Em baixo tom de desdita; num esparadrapo de sondar.
Soprano.
-Documentos! - acintou-se Bráulio sem pestanejar
truque.
-Identifique-se, pediu nervoso Ludovico, arma em
riste. Mas ainda assim desconfiado de alguma coisa, igual onça parda quando
ouve pio estranho na tigüera. Não sabia a razão do desmanche imediatista de
si.
O perseguido virou e correu curto, leve,
desacostumado, em desacorçôo, acuado que se restava.
Surpreendidos, os vigias da moral alheia correram
estupefatos atrás.
Atirar não valia. Estava muito fácil.
Dois contra um. Mamão-com-melado quente.
Até porque o tipo parecia estar desarmado.
E parecia com medo enorme, muito assustado. Presa
fácil no arreio das circunstâncias.
Nem duzentos metros e o alcançaram.

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Ludovico, mais forte, agarrou aos trancos, pelos cantos
dos ombros. Caçando depois a gola do paletó. O tipo esquivou-se, e,
desvincilhando baixou a cabeça e caçou novo rumo próprio.
Voltando de onde viera; a casa da amante. Chispou
feio.
Só que nesse corcovear de desvios lépidos o chapéu
caiu.
-Deus do céu! É uma mulher!
Era uma morena de tranças curtas no cabelo.
O caldo engrossou
A mulher do dr. Lindauro era aloirada. Será que a tipa
ali era amante do doutor? Puta vida!
Ou a esposa do dr. era "doente" e tinha uma amante do
mesmo sexo?...Que nojo, quase grunhiram aturdidos, rendidos às evidências.
Crendeospadre!
O mundo estava perdido mesmo.
Foram atrás novamente.
Rampa dura, camisas suadas, arquejando, coturnos
batendo pedregulhos roladores, seixos miúdos, terra branquela levantando
talco solto.
Na esquina do prédio da prefeitura com a antiga casa
do Tunico Bitencourt alcançaram. Quase arrotaram grandeza cívica.
A mulher, bem desfeita de si, chorava, debulhando
lágrimas, sentada numa mureta baixa, disforme, desacorçoada. Tinha perdido a
forma, a força, o tempero: o eixo da situação.
-DEIXEM-ME EM PAZ, PELO AMOR DE DEUS!
Pedido em vão. Estava encurralada no gomo do local
público.
Bráulio, mais aceso agarrou-a pelos cabelos, para
evitar uma nova correria, escape. O pulmão ardia. Estava era cansado daquilo
tudo. Faca e queijo na mão.
Nova surpresa.
A peruca morena veio junto com a mão solta.
Cabelos aloirados, rabo-de-cavalo.

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Terno despistando os seios fartos e moles, caídos, as
ancas côncavas.
Paletó apertado.
Sapato grande no pé entorta o bico fino.
-Mas, Deus do céu! é a própria Dona Nicotinha?
Ficaram órfãos, os tranqueiras.
Tinham descascados uma nova fatia crucial,
reveladora.
Como entregar ao dr. Lindauro que a sua esposa traía-o
consigo mesmo? Mãe da misericórdia. Benza-Deus.
Caso encerrado. Não tinham mais o que fazer. Estavam
chateados.
Menos afoitos, algo educados até, e com consideração
(devolvendo a peruca - Bráulio); limpando o chapéu sujo de terra Ludovico
desmontou pose de entrão em assunto alheio e pediu explicação para aquilo
tudo, fosse possível. Não tivesse a senhora dona nada contra. Ela que abrisse o
leque das coisas, depois de aguar o rosto transido.
Afinal, o casal pagava pelos serviços de vigília.
Tinham que dar conta do recado. Estavam perdidos.
Dona Nicotinha limpou o suór que ganhava o róseo
pequeno nariz pintado de sardas escuras feito manchas velhas.
Cândida, bateu o chapéu que recebera de volta, na
folgada calça de tergal. Limpou um achado de terra. Inventou o inexistente para
ganhar a cumbuca dolorosa de angustiosos minutos minguando a trégua.
E desandou a falar feito uma matraca despudorada.
Entre soluços curtos, suspiros fundos, e a pressa
apurada de ir-se para o canto de onde viera furtivamente, confessou-se,
rendida às evidências. Perdeu tempo naquele despojo de foro íntimo.
Foi criada sem conhecer o mundo, a não ser pelas
cuias de papos de caixeiros-viajantes que sondava pelos cantos ermos da
pensão dos pais. Vocês entendem?
Casei sem ver nada, sem falar com estranhos, sendo
fugidia de mim mesma. Eu, sempre caseira, mão na massa da solidão quase
palpável. Escondida de existir. Parecia uma tonta do mato. Birrenta e encruada
em pequeno e simplório mundinho de ler feito uma desesperada.
Família grande mas envolvida em afazeres, sem lhe dar
cunha de estima, arremate de zelo ou diálogo. Um pouco que conheci da vida,

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foi de ouvir-dizer. Ou reler às escondidas os diários com aventuras colegiais
dos tempos de estudos do marido e filhos. Não tinha tino das coisas acabadas,
da razão de ser dos prazeres e ausências indizíveis.
A cidade, um tédio.
Fofocas, afazeres, carteados, novelas, churrascos,
passear na praça. Futilidades.
Do quarto pro tanque. E vice-versa.
Do tanque pra cozinha. E malemal um caínho capricho
do marido que lhe entrevara a alma.
Escola dominical, feira, maternidade; sem laços de
ternuras,
Bailes o marido não gostava. Ele é quem dava as
cartas de tudo. Era fechado em si como se um arrependimento qualquer o
matasse.
Vida social para ele era visitar o asilo, o educandário,
o morgue, o armazém de secos e molhados do Antonio Pelissari. Ou guardião
de vizinhos em igual propósito sem oxigenar os seixos da vida.
Cumprimentar os parentes, espiar o triste funil do
dízimo dos dias, pouca coisa mesmo. Quase um esmolar de vida. Um viver
molóide, rococó, sem auto-estima.
Queria saber as acontecenças dos outros seres
humanos, que aproveitavam melhor a vida. O quê era um viver, exatamente?
Por quê o pessoal de Itararé bebia e se fartava em noites de entregas
camaradas e solidárias?
O marido, nada.
Jantava, assistia uma novelinha idiota, bebia licor de
ariticuns do mato, e, já com a fuça cheia de porres diários, homéricos,
desmaiava de "ervado" etílicamente. Nem um arremate de carinho perene, feito
gesto decorado de amor e prazer que na verdade nunca conhecera inteiro,
acabado.
Um "monte". Sem arremedo de qualquer sensibilidade.
Ela nem podia assistir direito uma fita. Além dele
acordar azedo e reclamão, senil e baleado de ressaca; quizilento,, cuidava que
a conta da força, da luz elétrica, ficava alta. Punha acentuado reparo no vadiar
disfarçado dela; punha reclamos bobos e coisinhas do arco-da-velha,
mesquinho e esclerosado que se restava, muitos anos mais que ela.
Unha de fome.

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Então montou a “presepada” da vazão possível.
Calha.
Vestia-se com as caras roupas boas dele. Apertavam
um pouco, mas impunham respeito, davam pose. Ela sentia-se com máscara.
Mas, pelo menos se SENTIA...
Ele desmaiava, ela - quando dava a depressão da
inutilidade sósia - saía ver pessoas; sabê-las, conhecer a vida nua a crua,
esfregar perdas de si na paisagem dos haveres. Dar-se por finalmente
existindo.
Adorava assistir seres humanos nos bares. Casais,
namorados, turmas, solitários, jogadores, bêbados. E eram suas poesias como
se fugas em versos, habitando o hangar sacrossantos dos entes.
Queria entender um pouco porque eram felizes, como
andavam em grupos e bebiam entre causos. Conversa mole para boi dormir.
Conversa fiada. Risos soltos e a benignidade de estarem juntos em porções de
prosas.
Era o que fazia de errado. Sentir se existindo assim. Os
reboques da resistência boêmia possível, tinham razão que a própria lucidez
humana desconhecia.
Buscava pendurar-se nos filtros mágicos das animadas
noitadas Itarareenses. Chorar pitangas quase escondida de cidadã amadora a
fizera amadurecer num cofre íntimo a resistência de "Sentidora", como ouvira
falar de um "de-que" inventado pela sua escritora predileta, Clarice Lispector.
Toadas, baladas e blues. Chorinhos e mantras. Tudo no
palco perto de si.
Clarinete, violino, bandolim. Álcool da promessa.
Brigas, comemorações, arranjos e magias noturnas.
Viver era bebemorar nas noites famosas de Itararé emperiquitada.
Era assim que se achava bem, flor-fêmea. Era assim
que então, finalmente se sentia.
Entre estranhos tipos barulhentos se ornava
acompanhada de gente. Não se preocupava com ninguém; com os traumas,
ressentimentos ou problemas de cada um, nada. Mas integrava-se nesse
contexto.
Tinha-se estranhamente segura. Criava prisma num
vivenciar perene.

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Sabia os seres humanos em toda proporção do que
tinham como fugas, divertimentos, amparo, matizes, iluminuras, essas coisas.
Que a perdoassem, pelo amor de Deus.
Que entendessem sua situação de desatinada.
Não contassem ao marido possessivo que, com certeza,
iria censurar, cortar os tubérculos de convívio. Não queria dar trabalho. Não
desejava dar essa frustração ao coitado.
Iria morrer de vergonha de não tê-la suprido
totalmente, nesse porém de desvio de conduta.
Quem sabe até a largaria, daria parte. Ela não
suportaria um abandono naquela idade e situação.
(Triste danosa culpa no cartório. Cerceio.
Arrependimento.)
Que a deixassem ir. Que a deixassem em paz com
aquele segredo seu, particular, pessoal.
Prometeu não mais fazer aquilo, naquele jogo de cena.
Mudaria radicalmente o comportamento.
Prometeu, encarecida, não errar nunca mais. Procuraria
conter suas ortodoxas cisternas emocionais, entrevando-se para sempre em
casa, rendida.
Pediria desquite, preciso fosse. Voltaria para a casa
dos pais, ou iria para um asilo depois de se dar por desaparecida.
Se eles achassem certo.
Estava nas mãos deles.
Iria sobreviver noutra freguesia; largaria a moenda do
lar, eles quisessem. Nem lhes daria motivo de julgamento.
Não macularia o lar, o seu ser amado, Dr. Lindauro.
Nem o sobrenome honroso que tivera daquele cidadão-
homem, que eles, a segui-la e questionar, bem representavam como cobras
criadas a cumprirem o contrato direito daquilo a que se prestavam como
profissionais.
Quando acabou de falar já com tom menos rancoroso e
punho seco de voz, desfazendo o olho do despojo, e até já ganhava coragem-
calço para voltar a parecer de novo consigo mesma, se achando, as flautas do
sol alto já alimentavam as ruas de gente em busca de lidas. E os vigias já nem
mais estavam por ali.

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Estavam longe, no distante periférico da Rua Frei
Caneca.
Iam de cabeça baixa.
Correu ganhar seu tino, tomar tento das coisas. Tomar
reposse de si.
A rua cheia, reparou. Era época de colheita de feijão-
das-águas, tempo de caminhões de bóias-frias.
Lojas abrindo portas. Os empórios de secos e
molhados pondo pechinchas de ocasião pra fora.
Os cabelos soltos, livres, alvoroçados.
Uma loura vestida de varão?
Será o impossível?
Mulher do dr. Lindauro? Onde já se viu aquela
palhaçada toda?
Pessoas humildes já ralavam a botina solta do haver
urbano.
Cuidou-se.
Vestiu-se inteira na carapuça do que se encorajara para
variar.
Viu de longe que o marido estava na rua, atônito,
aloprado, perdido. Chamara nervosamente um qualquer; mexia as mãos,
apontava para si, para a casa, parecia possesso, em desespero. Tinha
descoberto tudo. Tarde demais para se recompor.
Alardeara a coisa?
Dera com seu sumiço, com certeza; fogo na canjica da
descoberta rente.
Coração em disparada. Controlou-se o mais que pode.
Nunca pensou que passaria por aquilo.
Tinha acontecido o inesperado. Tarde, muito tarde.
Como voltar para casa naqueles trajes inex-plicáveis?
Vísceras expostas. Sentia-se um grão de areia no
deserto infinital do desespero.
Desacorçoou.
Ganhou o pomo da consciência possível. Tudo estava
acabado.
Escondeu o rosto franzido. Guardou com carinho
exagerado o caderno onde garatujara poemas cheios de alento. Colocou a

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peruca de novo. Acertou o chapéu encobrindo a cabeça, socando-o com raiva,
com ódio. Não podia voltar atrás. Tinha ido longe demais.
Acendeu um cigarro. Tossiu. As mãos trêmulas. Olhar
transido. Gestos parados.

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FINAIS OPCIONAIS
Final Trágico
Final Feliz
Final Surpresa

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01)Levantou-se de uma espécie de letargia ocasional e ganhou rumo da área
periférica mais distante da cidade. Um canto longínquo. Garrou um eito de
terra sem nada plantado, só densa mata virgem. Trilhas de bichos. Um rural
bem distante, enorme matagal, depois floresta sem eira e nem beira. Mata
atlântica. Um local sem saída de tão imenso, num espaço que dava para uma
colina, depois cadeia de montanhas, serras azuis; um oitão sem fim que nunca
acabava nos cafundós do judas, para muito além de onde se dizia ter ele
perdido as botas.
Muitos anos depois, uns caçadores maçons ligados a
uma confraria da Fazenda Morungava, no vizinho Paraná, ao andarilharem por
terras distantes, sentido da Serra do Paranapiacaba, lados do Paraná, deram
com os ossos semeados. Um ser humano tinha sido comido por onças, com
certeza. Haviam pedaços de roupas e pegadas nas imediações. Quem seria?
Autoridades federais e da Força Aérea Brasileira foram acionados.
Todos em busca dos restos mortais para exames de
DNA e outros, em laboratórios públicos.
Identificaram que eram os últimos vestígios de Dona
Nicotinha, pelo velho e encardido caderno de rascunhos poéticos inéditos,
onde nele se arrolavam, em graúdos salmos boêmios, o viço das noites
Itarareenses, com alguns resíduos de reclamos feito plangentes sofrências,
prazeiranças e re-esquentada auto-estima por causa dos conflitos ínteriores.
Nos apontamentos em versos brancos, a alma de Dona
Nicotinha Stravisnki era revelada em sinais e conhecenças como mimos, em
busca quase homeopática de um acalanto interior que só na morte deve ter
alcançado para, finalmente, descansar seu ser extremamente sensível em paz.

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02)Quando o dr. Lindauro sentiu pela falta da esposa, deu parte; correu boato
grosso na cidade. Os guardas Cebola e Batata como eram conhecidos,
resolveram prestar depoimento. Questão de consciência. Tudo foi esclarecido
e todos os Itarareenses foram atrás daquela mulher maravilhosa, com o
incentivo do marido rendido às evidências. Turmas armadas com archotes e
lanternas vararam cafundós em busca de uma pista daquela mulher de verve.
Autoridades se revezavam em turno, em busca de Dona Nicotinha. Até a
Polícia Florestal foi acionada. Muitos meses depois é que acharam a candonga
velha, mendingando numa praia do litoral paranaense, lados de Guaratuba,
dentes podres, cheia de berebas, meio esquizofrênica, abilolada. Trazida de
volta por um helicóptero do Exército, foi recebida com banda de música pela
cidade em polvorosa, e flores de laranjeira pelo marido que se descobriu
eternamente apaixonado, apesar de pouco solícito até então. E que prometeu
zelar mais da relação, sair com ela para os bares boêmios e clubes de Itararé,
em busca de uns tempos saudáveis na velhice, pois que o amor não é só na
energia da juventude, já que coração, carinho e ternura não tem idade. Ainda
hoje corre a lenda do caso em Itararé, pois Dona Nicotinha não existe mais,
apesar de, aqui e ali, uns guardinhas de novos tempos modernos, não se sabe
se alterados ou não quimicamente, andam vendo uma mulher vestida de
homem, com rabo-de-cavalo e tudo, sem chapéu, escrevendo nuns cadernos
velhos, pelos fantamasgóricos bares perif'éricos da cidade, como se de vez em
quando quisesse matar a saudade da boemia de seu festeiro rincão adorado,
onde passou os melhores momentos da vida. Mas também isso pode só ser
invenção de contadores de "causos" de Itararé, ilustrando farta ficção com
exageros.

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03)Dona Nicotinha pensou que não deveria forçar coragem para voltar para
casa naqueles trajes. No entanto revestiu-se de empenho no esforço de
rebuscada auto-estima, e arriscou. O marido estava na esquina, com a polícia
civil fazendo registro de alguma coisa que ele apavorado relatava. Não se fez
de rogada. Mal dissimulada entrou furtivamente em casa e foi correndo se
trocar. Por sorte ninguém a tinha visto entrar, isto é: visto um tipo gordo de
terno completo entrar na residência escancarada. Depois falaria com os vigias,
pediria silêncio, pagaria um preço, preciso fosse. Em horas que foi descoberta
pelo marido aturdido, tinha feito as malas. A carta estava colada na geladeira,
com um imã imitando um palhacinho chorando. Estava investindo em si mesma,
no seu interior. Estava largando lar, filhos, sociedade, sobrenome, tudo, para
entrar para o Convento das Carmelitas, em Foz do Iguaçu. Compreendera que a
vida lhe tinha sido madastra, e, pelo menos num lugar santo, reclusa, seria
humilde, poderia rezar, ainda ler muito, seu vício solitário de essência de Ser.
Já sabia o que desesperava os seres humanos e não fazia sentido aos animais:
os homens sabiam que iam morrer. Então bebiam para tornar a existência mais
interessante. Sentira que somente os imbecis eram felizes, pois qualquer outra
felicidade seria montada, química, de araque. Só havia salvação para os puros.
E se desiludira da vida. Quando ficou sabendo a decisão da esposa pertubada,
dr. Lindauro ficou uma arara, ameaçou se matar, mas não encontrou recurso
simples que não amaldiçoar o dia que desposara aquela louca varrida. Mas era
tarde demais. Muito tarde. Ele a tinha perdido. Na verdade a perdera para si
mesmo. Em pouco tempo a esposa foi acolhida na Ordem das Carmelitas e
nunca mais foi vista em Itararé. Dr. Lindauro não durou muito depois desse
choque, pois já estava em avanço de idade e a perda da mulher amada fora
irrecuperável, fatal. Dizem que morreu implorando a presença dela ao seu lado
para segurar vela, reminiscências e crucifixo. E para pedir perdão, apagar o
peso da consciência. Para os filhos, o pai tinha ficado louco. Mal sabiam que a
mãe já tinha tinha morrido há muito tempo e, naquele momento final que ele
deu um último suspiro - feliz como nunca se vira - ela o estava recebendo no
outro lado desse inferno que erroneamente chamamos vida.
(FIM)

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A SEGUNDA MÃE
"Meu filho vai ter nome de santo(...)/É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã)/Porque se você parar para
pensar/ Na verdade não há(...)/Já morei em tanta casa que não
me lembro mais(...)/Você me diz que seus pais não entendem/
Mas você não entende seus pais(...)/São crianças como você"
(Pais e Filhos - Renato Russo)
Carlito até que tinha todas as qualidades de um
legítimo filho bonito, inteligente, sadio, alegre, normal. Só que havia um
problema, como se um pobre "reinar" bobo. Adorava os pais, a família, mas
tinha uma dúvida que no começo era como se uma boba brincadeira de criança
peralta, algo carente: achava que era adotado. Que a sua verdadeira mãe não
era a maravilhosa Dona Júlia. No começo a genitora achou graça, fez gesto
bento de carinho apurado, riu muito, jurou por Deus que era, coisa e tal. Mas,
com o passar do leque dos anos, aquilo foi virando chateação, sina. Até
intenção de exagero. A verdadeira mãe de Carlito sofria muito, quando
deixava o menino emperrado em sua maneira de chamar atenção, cismar
errado. Tinha que saber lidar com ele. Sabia as dores da concepção, do parto,
gerara-o - dera muito trabalho a gravidez (raspa de tacho); quase o perdera -
tivera internado várias vezes com pneumonia e desenganado pelos médicos,
mas, afinal, ganhara viço e crescera com aquela triste suposição; parecia que
reinando, falando sério; dizendo sentir isso. Passou a ter certa tristeza dura no
olhar, quando repetia a querela como se para dentro de si mesmo; algo
inexplicável. Com o passar dos anos, o Seu Rogério, seu pai, menos
preocupado com a questão que achava reinação jocosa de implicância, pediu
que ele não falasse mais nessa suposta e aventada condição, pois Dona Júlia
ficava ruim, sofria, palpitava o coração, dava nos nervos, ficava muito triste.
Não gostava, melindrada e constrangida que se restava, abatida. Carlito
guardou isso com ele. Como se tivesse esquecido, cresceu alguns gomos de
tempo, fez-se jovem estudioso, trabalhador, um ser humano adorável.
Quando, finalmente, mal começou a namorar a prendada
normalista Maísa, confidenciou a ela essa intuição. Como o pai de Maísa era
funcionário público de alto escalão, visando tirar a dúvida do possível genro,
fez umas pesquisas gratuitas para ele. No cartório de títulos e documentos, na
Santa Casa de Misericórdia de Itararé, nas vizinhanças antigas da pacata Vila
São Vicente, chegando até mesmo a colher sangue do moço. Depois verificou
que, numa clínica particular de Itararé, tinha sangue dos pais de Carlito.

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Mentindo, às escondidas, fez o caro exame de DNA e a única possível verdade
se confirmou: realmente Carlito era puro filho legítimo do casal Júlia e
Rogério. Não havia mais como ele conseguir suspeitar, trazer essa bobagem
íntima consigo feito câncer. Mas Carlito era teimoso ou o quê? Tinha certeza
que amava aqueles seus pais de criação, mas, dizia que, pelo menos sua mãe
era outra. Sentia isso. Não sabia explicar direito por quê. Algo dentro de si
tinha esse código como se genético, na toleima que se revelou ainda em
precoce lucidez. Morria por Dona Júlia que era adorável e quase santa, mas
sentia dentro de si - inexplicável a intuição medonha! - que viera de outro lar,
outro espaço geográfico, outra barriga. O pretenso sogro até que achou aquele
candidato a membro da família meio abilolado, tantã. Quase interferiu no
romance de meses. Se o rapaz quisesse sarna pra se coçar, que arrumasse outra
namorada para vítima, não sua adorada filha de boa índole e cabeça na real.
Mal veio o tempo de servir à pátria, Carlito achou que era hora de cair fora, de
sair de Itararé. Família classe média, talvez nas Forças Armadas encontrasse
seu caminho certo, fizesse carreira, fortuna, quem sabe até fosse feliz. Um dia
comunicou o arrojado alistamento à família. Seu pai achou que ele, muito
teimoso e de personalidade, iria sofrer bastante no quartel, que se não mudasse
o temperamento e a determinação, daria com os burros n'água. A tinhosa mãe,
chorando escondido a perda do filho caçula de três homens que, já casados se
aprumaram em Itararé, deu a curtida benção e entrevou-se em orações e
pressentimentos de instintos apurados, pois sabia que aquele ente criara não
para si, mas para o balaio doloroso (e em polvorosa) do mundo. Cedo o
menino revelou-se curioso, vivo, viajante, esperto, manhoso; cheio de amigos,
com o mesmo lenga-lenga de que sua mãe era outra, como se procurasse o lar
escondido que não havia em algum um outro lugar, uma outra mãe que não
existia no cioso campo das possibilidades espirituais. Talvez a farda lhe desse
juízo porque valente era, muito estudioso, culto e metido a boêmio de meia-
tigela. Pois o rapagão espigado que se tornara Carlito, um dia foi-se para um
quartel, lados do litoral do Espírito Santo, onde estaria lotado por dois anos.
Escrevia, saudoso, de vez em quando. Mandava presentes caros. Prestimoso,
telefonava, vinha nos aniversários, no Natal ficava garboso de parente amigo
carinhoso, até se vestia de Papai Noel e distribuia balas para a petizada pobre
da carente periferia descalça das ruas de chão cor-de-rosa de Itararé. Foi
promovido a cabo. Tinha medalhas por atos de heróicos à paisana. Aspirava
ser sargento, estava indo bem, fazendo carreira militar. Dera sorte e usara o
empenho para mostrar-se digno, altivo, líder, determinado e valente. Até

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esqueceram a sem-graça dele se dizer adotivo, filho de outra. Criara juízo. O
Exército Brasileiro mudara seus hábitos e o estimulara a estudar mais, fazer
cursos, treinamentos. estágios. Aquilo tudo tinha passado. Dona Júlia só temia
uma guerra civil, uma revolução, um terrorismo internacional que envolvesse
seu filho carente e querido. Itararé tinha essa triste fama toda, com as
revoluções de estratégica cidade de divisa que sofrera. Como a de 1922, a
l930, de Getúlio Vargas que vivenciara de perto, quando o sítio paulista de
vinte alqueires de seus finados pais tinha sido saqueado, o empório de secos e
molhados invadido, os paióis esvaziados pelos truculentos revolucionários;
porcos de raça tomados na marra, cavalos árabes de puro sangue arrancados a
força dos estábulos, gado vacum gordo servindo de almoço à tropa gaúcha que
depois bandeou-se para o Rio de Janeiro, sustentando Getúlio Vargas que
galgou o poder por longos anos, até ser propositalmente "suicidado", como
descendentes de gaúchos que aprumaram vida ali em Itararé, e que diziam
saber de mão beijada essa verdade escondida na história de informação quente
e sadia. Itararé fazia parte e era palco da vida brasileira.
Pois o "gurí Carlito" (assim Dona Júlia chamava o filhote amado e
especial), continuava brilhando na carreira, com quase sete anos no Exército
Brasileiro e já sendo oficial. Até que um bendito dia antes da novela das oito,
Dona Júlia viu na televisão que o Brasil integraria uma tropa internacional de
elite da ONU, para servir em missão de emergência no exterior. E observou,
claramente, seu filho embarcar num navio chamado Dom Pedro II, acenando
como se para ela, enfocado pela câmara que fazia a reportagem e o focalizava
em close entre mais de mil soldados, superiores e outros oficiais partindo para
missão de paz em zona de conflitos étnicos lados do Leste Europeu, depois
sortindo variados destinos em missões especiais. O coração de mãe ganhou a
cidra quente de um punhal doloroso. Instinto? Parecia anunciar um fogo dentro
de si, dizendo que estava perdendo o filho. Seria a morte a ceifar a vida
daquele que mais prezava? Sondou essa dolorosa perspectiva. Por meses
ficou sem notícias. Tentou embaixadas, ministério das relações exteriores,
nada. Para alguns militares graduados, ele tinha sido morto em combate de rua,
dado como anônimo, mas corpo e pertences não vinham. Para outros, mais de
ano depois, dado à estúpida burocracia militarizada do governo (herança da
Canalha ditatorial de 1964) ele devia possivelmente ter deserdado e os papéis
em regime de secretos ainda não podiam revelar nada. Nunca mais chegou
notícias, cartas, telefonemas e nem presentes. Quase que totalmente esquecido
pelo resto da família, foi dado como desaparecido. Só Dona Júlia sabia do

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menino vivo, mesmo que não sabendo explicar esse instinto primário no corote
do íntimo transido, em desespero. Quase uma década se passou e do filho só a
foto colada no espelho dentro de guarda-roupa do casal. Ela orava, pedia,
fazia promessa; nunca obteve resposta íntima e intuitiva da morte, e assim
tinha-no vivo como uma orquídea eterna numa saída de emergência do
coração, da alma, do espiritual esperançoso da mente. Um modesto cântaro de
expectativa talismã e só.
Um dia, muito tempo depois, estava ensimesmada a podar roseira-
rubra no quintal enorme, quando sentiu um sopro dentro do coração. Um
suspiro. Sim, algo como se uma pontada interna de menta gelada ardeu no
íntimo transido, oxigenando as catedrais alvoroçadas da emoção. Como se um
ligeiro pássaro lhe entoasse uma boa-nova no íntimo. Largou a tesoura de
podar rosas variadas no jardim caseiro, arrancou o guarda-pó salmão-claro,
pinchou o cesto de folhas e rosas secas fora. Garrou a meia-água da casa
vazia. Foi quando ouviu baterem exageradas palmas no portão. Aquele jeito
atrevido de se anunciar barulhento, alvissareiro (e moleque) - como podia
esquecer? - era de Carlito, bendito seja! Desfolhou as duas vendas de cortinas
da janela retangular da sala. Sim, lá estava o homem forte que ele se tornara -
mas o mesmo cabelo ruim, o mesmo riso escancarado, o mesmo nariz redondo,
os mesmos olhos de amêndoas como o dela - o filho! O filho? Só estranhou,
meio ciumenta; abraçado à uma senhora velhinha de túnica exótica? Não
entendeu. Mas, feito louca disparou, girou nos calcanhares, largou o par de
chinelos verde gasto de um lado de tanto uso, e correu descalça abraçar aquela
parte viva de si, aquele moço precioso que era a razão de sua vida, pois o
marido tinha morrido e ela mesma estava com indícios de câncer na mama mas
vinha adiando precauções. Só não assumira a doença por teimar em ver o filho
antes de qualquer cuidado ou até preparar o lamento de dor, de tratamento ou
da inevitável morte. Abraçou chorando o filho, possessiva, aloprada, dona de
si. Mordeu-o, apalpou, beliscou, quase que arrancou pedaço ou bateu de cinta
só para castigar a dolorosa ausência, naqueles tempos de vacas magras em que
se restava o lar e o país entrevado em crise política, numa carestia danada e a
pensão do falecido mal dando para a mistura. Carlito atirou-a ao ar; como
criança crescida que ainda era, pois que ficara forte, musculoso, ainda mais
bonito. Chorou feito bebê manhoso de saudade e amor nos braços de Dona
Júlia, que sentiu-se plena até para, finalmente se tratar da doença terminal, ou
morrer em paz, fosse a carta do destino algoz. O filho mais querido e admirado
voltara ao lar. Vizinhos, curiosos saíram às janelas e identificaram a patente

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recuperada. Irmãos semi-calvos apareceram, sobrinhos ranhentos e com
amarelão; a Rua Talismã encheu-se de parentes, vizinhos, passantes. Haveria
festa. Rebuliço generalizado. O filho pródigo voltara. Deus seja louvado.
Então Carlito, levando a mãe para dentro, depois de secar as lágrimas dela
com repetidos beijos curtos, tomando pela mão daquela anciã cega que trazia
de longe consigo, apresentou a exótica estrangeira da Ioguslávia com imedida
ternura, explicando que amava Dona Júlia; que ela perdoasse, mas que depois
de ferido em armadilha de guerrilheiros e fugir de uns mercenários inimigos,
ao vadiar por terras estranhas, em zonas de fronteiras, pelo cheiro de seu suor
velho e sangue seco foi identificado e reconhecido por aquela muçulmana cega
que era sua verdadeira mãe.
Finais Opcionais
Final Feliz
Final Fantasia
Final Místico

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01)Contou que, depois de ferido em combate com guerrilheiros da chamada
Região dos Balcãs, tinha sido dado como morto e foi rapidamente abandonado
em campo de batalha; sua tropa voltou ao acampamento de emergência e ele
ficou num canto de árido deserto, entre um precário oásis e umas paineiras,
junto com outros cadáveres de soldados de várias nações amigas do mesmo
projeto de paz multinacional. Quando alguns ladrões de pertences de
cadáveres o localizaram, é que foi reconhecido por aqueles estranhos beduínos
nômades e mendigos de restos de butins de cadáveres de guerras tribais, como
ainda vivo. Foi levado a uma casa arrebalde de um lugar que não conhecia,
nem a língua, nem a localização, só que era um resto de família que tinha sido
dizimada por antigas lutas étnicas. Fora cuidado, apegara-se ao resto daquele
clã perdido, ajudou-os a sobreviver com parcos recursos, além de treiná-los a
se defenderem de serem extintos, pois, afinal, lhe salvaram a vida, sendo ele
um estrangeiro em luta que não lhes dizia respeito. Ensinou o que sabia aos
poucos jovens sofridos de uma mesma aldeota. Um dia saiu para ir buscar o
que comer num pomar de tâmaras e oliveiras que vira por perto, e quando
voltou o seu bando nômade tinha sido pego por inimigos e nada mais restava.
Um genocídio. Carlito tinha se comprometido em parte e só lhe restara fugir.
Vagou por meses, escondido, nas selvas da velha Bósnia-Herzegóvina,
fingindo-se de mudo para tentar a parca sobrevivência possível. Atravessou,
feito um surdo-mudo desertor de guerra, diversas fronteiras. Roubara jipes
velhos, entrara clandestino num barco pesqueiro de contrabando, variara rumo.
Tivera uma amnésia ocasional. Um dia, ainda perdido, contemplando uma
espécie de feira de alimentos exóticos perto de um lugar cheio de camelos e
artigos orientais, quando viu-se agitado frente ao destempero de uma mendiga
cega que, ao senti-lo por perto, no derredor rente, gritou alguma coisa, pediu
ajuda e ele foi agarrado por fregueses e parceiros de labuta mercantil. Levado
até ela, foi ostensivamente abraçado e coberto de beijos molhados, com a
louca mulher caindo de joelhos em prantos a cuidá-lo, pedindo perdão,
bendizendo-se, louvando Alá, Maomé, coisa assim, pelo que de imediato ele
mal compreendera, ainda atarantado. A muito custo e depois de saber de um
traficante ali, conhecedor da língua inglesa (que ele aprendera no exército para
aquela missão para o qual se candidatara) ficou sabendo que a pobre anciã
mística e paranormal, sensitiva, o reconhecia como filho perdido em outra
vida, depois de uma besteira que fizera. Ficou sabendo que ela o perdera e
que, depois, com consciência pesada, furara os olhos em sublimação, pois só
podia achá-lo, reencontrá-lo de alguma inexplicável maneira, se

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desenvolvesse alguns dons, inclusive o olfato apurado com a provocada
cegueira de décadas. Pagara promessas; vira-o, com a mente especial que
adquirira ao longo de escuridão, perdido a vagar nalgum continente distante,
mas, sentira-o, aos poucos, finalmente chegar inteiro e todinho seu ali perto,
depois, nas vizinhanças da cidade de Kosovo, e, finalmente perambulando ali
na região, até que um vento quente do deserto o trouxera em cheiro e energia-
luz (que ela sentira de alguma maneira) junto com odores de sândalos,
damascos, fogos; o sangue pisado de seu pedaço perdido de vida. Foi levado
com honra pela mulher que finalmente pagou um tradutor para saber tudo do
seu filho querido. E contou a sua sina. Crime e castigo. O coração de Carlito
(ah sua velha intuição!) sentiu que ela era mesmo sua verdadeira mãe, mal a
abraçou depois de agarrado. Agora a trazia ali para sua amada Itararé, para
sua família brasileirinha conhecê-la. Tinha agora duas maravilhosas mães e
quem é que não deseja essa graça especial de Deus na vida?
-0-

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02)-Uma raríssima espécie muito antiga de Gafanhoto Verde cristalizado,
dentro de um quartzo-róseo; sim, era isso! Num deserto entre uma fronteira
ostensivamente armada e outra, achara aquela prova de vida e água há milhões
de anos ali, naquela desértica região de comflito. Pois o tal achado tão raro,
como se lhe liberara - na mente? no sensorial? na alma? - um código ( que
parecia ser no subconsciente ou nalgum sensível arquivo genético - dando
lucidez sensorial à sua cansada mente de desesperado, vindo a lembrança de
que reinara sempre a respeito de que Dona Júlia não era sua mãe, pelo menos,
de certa forma, não a única; que se perdera de uma outra principal, verdadeira
Mãe, num outro extremo do mundo, longe de sua pacata e brasileirinha Itararé.
Pois aquela preciosidade de pedra moldada há séculos, achada numa zona de
guerra com instintos tribais, ligava coisas inconsciente de si, no íntimo (que
não sabia bem como entender, decodificar) com outra espécie de vida, em
dimensão e estágio diferente. Só o seu cérebro especial, de louco, podia
“Sentir” isso. Sim, estava em sua casa, em seu espaço geográfico, em seu lar
de vidas anteriores (onde fora renegado?). Reconheceu o antigo habitat seu, os
pormenores do árido local, a geografia de um lugar adjacente quase savana, a
paisagem de palmeiras altas, até mesmo as pessoas que não acreditaram que
era ele vivo e adulto com roupas ocidentais, depois de tanto tempo, depois de
morto. Foi chegar-se no portão, onde dois tipos com roupas exóticas faziam as
honras da guarda com espadas redondas, tortas, e viu uma velhota polindo uma
adaga larga e côncava, cantando louvores a Maomé (ou a Alá, não
compreendeu bem) que ao notá-lo deu um grito de assombro, que ele ouviu no
mais profundo e íntimo radar sensorial de si. Reconheceu, de alguma maneira
inesplicável, que aquela senhora de tribo nômade matriarcal, era sua vó, mãe
de sua genitora cega que o conduzira ali. Sim, finalmente encontrara sua
verdadeira Mãe, que o sentira filho perdido - voltando de outra gestação, outra
vida - pelo cheiro de suór salgado e pelo sangue ainda impregnado nos restos
de ferimentos que trazia na roupa de improvisado falso beduíno errante, louco
e perdido andarilho a peregrinar com sua cisma terreal, como se guiado para
ali, pelas mãos sagradas de Alá, dono de todos os destinos, pai de todas as
coisas. Estava escrito. Maktub.
-0-

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03)A outra mãe, a segunda, de nome Ann-Debrah, seduzida e violada por uma
primeira paixão impossível - um belo vendedor de damascos e sândalos
exóticos (que depois tinha sido degolado pelos irmãos em desonra) - contara
que, dando-se grávida, procurou esconder o crime de seu juvenil amor secreto.
Depois de meses, com medo enorme de ser vendida pelo tio-padrasto
mercador de escravos sem escrúpulos, tomou um conhecido chá de acácia-roxa
do deserto e abortou a criança a pouco menos de três meses e meio de
indesejável gravidez interrompida. Foi um erro. Nunca mais teve sossego
depois disso. Virou a cabeça. Perdeu a paz de espírito. Tinha pesadelos
rotineiros feito uma biruta, mais certas mágoas aprendidas, ressentimentos
amargos, frustações destemperadas, como se o coração alquebrado tivesse
sido arrancado de si. Alma pisada. Carregou o trauma dessa perda consigo
pelos restos de seus anos em sublimação e auto punição de cegar-se. No
entanto, como se uma adaga de Deus em sua consciência, em sua mente de
louca entrevada, toda bendita noite sonhava o mesmo sonho tétrico: via o ente
recusado ainda feto, composto dentro de um enorme tijolo de construção
piramidal, como uma placenta pétrea. E o pior era que a criação humana, ali
dolorosamente incrustada, jamais a perdoaria até o final dos séculos, pois
controlava o tremendo pavor de seu erro maternal, mantendo os enormes olhos
vivos e acesos, como se a censurá-la, julgando-a, ainda com uma lágrima
eternal emperrada no gomo de pedra, na releitura abismal da morte que
passara a morar dentro dela desde então. Mas, por um milagre de angelical
proporção imedida, ali o tinha bendito e vivo de volta, de alguma forma,
depois de se punir, sublimar-se; passar quase meio século cega, chorando
escondida e depois em público (feito bisonha e louca) pedindo a Alá o perdão
que de alguma forma especial recebera, tinha sido contemplada por enorme
graça divina, pois a sagração dos caminhos de Deus não são os caminhos
finitos do homem.

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PRÓDIGO
"Temos que prestar contas/De nossa taxa de
trevas"
(João Gilberto Noll)
____________________________________________________________
Parte Um:
ABEL SAIU TARDE DA EMPRESA DO PAI, naquela sexta-feira
quente de um verão qualquer, indo à pé para a casa que ficava perto, ali numa
arborizada alameda paralela à Avenida Paulista, agitado centro econômico da
capital do Estado de São Paulo. Mal virou o último quarteirão, ficou
assustado. À porta do mansão dos pais, erguida com muito esforço pelo seu
velho, José Maria Sidrack Jordão, havia uma montueira de gente, desde moto-
boys entregando comida chinesa, peruas deixando flores em buquês e vasos,
paroaras de triciclos recebendo por pizzas variadas, e também algumas
mocinholas mal feitas de formas entregando quibes e hambúrgueres. O quê
teria havido? A morte da mãe doente, dona Maria José, não deveria ser, pois
as belas janelas vizinhas, de pessoas ricas, traziam olhares alegres,
despachados, havendo até música alta e rastros de fogos de artifício. O quê
estaria acontecendo? O quê era aquilo, afinal? O vigilante da rua, um polaco
com sardas ruivas, correu prestativo a saudá-lo, aproveitando para anunciar
emocionado o motivo de tal "forfé": Dr. Abel, disse o moço, carregando no
sotaque, vosso irmão gêmeo que estava sumido, reapareceu. Vosso pai está
que não pode mais de contentamento. Vossa mãe até reviçou-se da recente
operação de doença ruim. Abel Sidrack Jordão, empacou. Onde já se viu?.
Ficou de orelhas em pé; de butuca, logo, pensou numa estratégica fuga rápida.
Consciência pesada. Pulga atrás da orelha. Mal esboçou sondar para catar um
táxi e dar no pira rapidamente, quando o seu pai surgiu num vão da porta de
segurança do condomínio e, vendo-o empacado num entra-não-entra assustado,
correu entusiasmado até ele. Filhinho, disse o ancião José Maria, seu
irmãozinho que se achava perdido, apareceu; benza-Deus, suplicou o
português-judeu originário de Coimbra, Portugal, mãos trêmulas, fronte alva,

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cãs, boca murcha, olhos claros como a alma do céu. Abel pensou palavras
ôcas, mas uma só sílaba sequer soou. Seus olhos estacaram. Preocupação,
medo. A boca presa segurando o confeito da linguagem que não vinha pronta,
para soar em resposta. Pasmo, contemplou o genitor que o inquiria com o olhar
brilhando e feliz, como nunca o vira antes. Sei, disse o pai, eu também restei-
me surpreso. Quem diria, hein? Mal pensou em forçar uma fala qualquer e o
velhote continuou, loqüaz: -Ele contou que só se lembra de ter recuperado os
sentidos num lago; estava cheirando a álcool velho e não se recordava de mais
nada, do que se lhe tinha acontecido. Depois, preocupado e com medo de ter
aprontado demais, alguma coisa grave que não atinava o que era, machucado e
se arrastando como pode, deu de vagar alhures, até valendo-se de usar os
cartões de crédito, reinando por esse mundão de Deus. Não se recuperou
totalmente ainda, o coitado. Ainda bem, desabafou, mais tranqüilo, Abel, sem
dizer qualquer coisa. Pelo menos assim. Tinham tido uma briga. Ele pensara
ter matado o irmão. E não é que o senjeito estava era vivinho da silva e
reaparecera? Ainda bem que andava meio aloprado. Tinha fama de farrista pra
mais de metro, além de, agora, também ter acabado com mais uma parte da
fortuna da família, dando tremendo desboque, aduziu. Quem sabe se os pais
finalmente lhe cobrariam juízo, depois de um baita sermão, coisa assim. Abel
matutou bem, azedo. O irmão sempre fora um gastador, "bon vivant",
bagunceiro, metido a poeta moderno, meio artista também e com forçada panca
de carente. O pior é que a mãe adorava esse diabinho esquisito. O pai, por ele
puxava um bonde. Abel, no entanto, sempre tinha sido um bom menino, correto,
trabalhador, apegado, ordeiro, guardião da moral e dos bons costumes do clã,
feito o sexagenário patriarca já aposentado. Aquele entojo da mãe pelo seu
imaturo irmão gêmeo, era um derretimento. Estavam fazendo festa pro maldito
do porqueira, que abusava sempre da fraqueza do velho bondoso e sensível. O
disgramado do caçula não fundava juízo mesmo. Ficou bravo, mas se segurou
como pode na pose ruim, dissimulada. Entrou, finalmente, em casa. O seu
irmão reencontrado, fartava-se, comendo faisão grelhado. Servido pelo
mordomo Aristides, tomava dose dupla de uísque importado; a mãe,
dependurada no pescoço dele, mais frutas, pratarias e peças de antiguidade da
saleta de jantar, toda derramada de emoção, até nos lentos gestos e olhar
cândido. Mal notou Abel chegando, depois do batente, até tarde da noite que já
entrava em quase dez horas. Caim Sidrack Jordão, louro como a mãe
descendente de judeus, ao ver sua chegada tardia ali, irmão que nascera alguns
segundos antes, mais velho portanto, abraçou-o e chorou feito manteiga

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derretida. Então não se lembrava de nada, do entrevero ocorrido entre ambos?
ponderou Abel, mais desarmado de preocupação, acrescentando ares de
forçada estima e arranjado carinho, pondo acentuado reparo no contexto todo
do momento familiar. Depois, com ciúme doentio, mal grunhiu um ôi curto e
seco para a mãe alumbrada e resolveu, para fugir daquele festim exagerado e
fora de propósito; daquele guaiú dos diabos, buscando por garrar sua suíte no
piso superior da mansão, no andar acima daquele prédio suntuoso, estilo-neo
clássico. Pela noite a dentro a festa ganhou novos contornos de fuzarca: visitas
- parentes, vizinhos estimados, amigos de afeiçôo - e uns curiosos mais. Tudo
era barulho e alegria. Abel embruteceu-se. Chamou então pela irmã de criação,
uma prima órfã em segundo grau, trazida de Londres, pela qual era
secretamente apaixonado. A irmã mais nova de todos, que comandava o
casario como se uma espécie de governanta, veio a ter com aquele irmão mais
velho que adorava, por ser seu confidente e de total confiança, um verdadeiro
ombro amigo para todas as horas. Madalena, como se chamava a inglesa,
achou Abel depauperado, tomando seu vinho frisante alemão, pois era o
predileto que usava de se servir como sempre, principalmente para fugir de
algum problema, alguma situação de encalhe qualquer, fumando adoidado e,
quando pensou em saber o motivo daquela cara amarrada, em cobrar alegria
pela volta do caçula que se achava perdido, viu Abel sair do silêncio em que
se restava encruado, e, nervoso, deitar falatório, feito purgação: Veja, querida
Madalena, disse com ares de pouco caso e feição de tromba, eu sempre fui do
batente, uma mão na roda pro pai, um verdadeiro pé de boi, gurí ainda que,
desde a Fazenda Jordão em Itararé, dei suor, sangue e lágrimas no trabalho
incessável, tentando manter o lastro econômico nosso, e você veja quem é o
festejado hoje! Você bem sabe, desde quando veio morar conosco, que o
maldito Caim Sidrack Jordão não é flor que se cheire, não é de fritar bolinhos,
desde pequeno muito atrevido, fingindo doenças inexistentes para ganhar
carinho extra, topetudo, metido a sensível, ora um pintor de ocasião, ora um
bailarino de araque, uma piada. Mal criou um raminho de bode nas fuças e
garrou de catar as meninas, os primos, colegas de infância e de escolas.
Depois abandonou os estudos do colégio e viu-se a fazer uma espécie de teatro
de absurdos. Gastou boa parte de nossa fortuna montando doações para grupos
de aidéticos, ongs de ecologia, favelas periféricas, uma barbaridade. Pois o
disgramado acabou com os fundos dos cartões de crédito que ganhou de graça,
sacou a vontade da conta conjunta com o papai, vendeu a preço infame as
ações da empresa que o velho lhe dera por ocasião das comemorações de 24

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anos, tomou chá de sumiço, caiu fora. Eu, um filho correto, direito, mal-e-mal
vi uma festa assim num antigo aniversário que nem me lembro direito, terminou
Abel, ressentido e pondo os bofes de fora, coçando a gadelha ruiva feito um
tique nervoso mal administrado em si. Madalena mal guardou um afago rápido,
mediu-se no afeto de estima profunda, pensou em serrar um golpe de bebida
também, pôr uma moeda de consolo no cofre do diálogo e desafeto ali exposto,
mas, depois, sem uma flor de consolo que fosse, rompeu-se a sair apressada do
quarto, pois o garçom Boaventura a caçava. Iam receber um primo famoso de
Israel que tinha ido expressar solidariedade, e queriam-na, preparando um
guisado de carneiro com cogumelos. Abel ficou entrevado em sua cisma, olhos
carregados de ódio desfeito em lágrimas.
Pensou no dia em que dera um sermão, passara um pito no
irmão cusarruim. Ambos tinham bebido boa quantidade de vodka russa
importada. A mãe, para variar, sempre se preocupada mais com Caim. Abel
poderia demorar o que fosse, o que precisasse, confiava cegamente nele. Por
Caim, no entanto, perdia noites inteiras em vigília, a esperá-lo. Mal atrasava
um tico de tempo que fosse, a mãe punha demorados olhares tristes nas janelas
entreabertas, nos vãos de portas, depois ligava praqui e prali, feito uma louca
obsessão. Pois o dia amanheceu e o bendito desmiolado não surgia como se
esperava. Talvez estivesse afundado na adega de um amigo, numa orgia com
alguma depravada presa noturna. Abel fez questão de esperar. Estava de pá
virada. Passara um dia horrível, entre balancetes, reuniões, problemas com os
Sem Terra de Itararé que invadiram um antigo latifúndio (ganho por força de
contratados grileiros violentos que tomavam terras devolutas de legítimos
usucapiões de camponeses antigos), depois, os rolos de papéis para montar
uma bela glosa do Imposto de Renda. Pois o lazarento do irmão irresponsável
voltou para casa com jornais matutinos e pães quentes pro desjejum sob os
braços longos, pouco se medindo na porção pincel da ante-manhã, sem mostrar
preocupação qualquer, feito um rei da vida, da noite; parecia até com seqüela
de alteração química, pontas de alfinetes na menina dos olhos. Vivia
intensamente o traste, como se quisesse ser ao mesmo tempo, o caçador e
também a caça. Começaram um destrinche de conversa fiada, que depois
animou-se para a rudeza em comum, e a truculência de Abel levou Caim a
atirar-lhe, passado que estava, um monte de desaforos crús. Foi um pandareco.
Para os pais não acordarem intranqüilos e nervosos sem medirem qual com tal,
saíram trocando impropérios pelas vazias alamedas circunvizinhas, em tons
cada vez mais exaltados: Onde já se viu, será o impossível? As frases iam e

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vinham pesadas, ferinas, cruéis, secas, duras. Depois de um certo caminhar
entre troca de insultos, Abel falava, puto da vida,, e Caim só provocava,
acirrando a discórdia. Quando deu-se o dia no beiço das quase cinco da manhã
daquele "Sabat", estavam andarilhando pelas folhas secas de outono do Parque
Ibirapuera. Abel xingava Caim de moleque, vagabundo, desgraçado. Caim,
troçando de tudo, numa algazarra de gestos pelo pileque ainda inteiro, não
saradinho de nada, fazia micagens, caretas, imitava a pose do irmão casca-
grossa, sem seca, dizia-se feliz ao seu jeito característico, pondo que seu
irmão ali metido a sebo era boçal, janotinha, metido a gente fina, um pamonha
que vivia se escondendo de viver intensamente, fugindo das lâminas da mais
pura havência, dos retraços de polimentos íntimos, dos rastros puros que
devem nortear uma existência inteira, cabal. De um viver que tecia
acontecências de foro íntimo, arrebentando fissuras novas e inimagináveis,
como certas estradas de tijolos amarelos - ah a balada do roqueiro inglês que
adorava! - perdendo tempo, sendo o que não era, fingindo feito um executivo
enclausurado num escritório, entre uma máquina de somar, um computador frio
e rotinas idiotas. Foram longe nesse rebuscar o ferir recíproco, quando Abel
ficou fulo, perdeu de vez as estribeiras, o bom senso, o controle emocional já
naturalmente precário. Pois virou um bicho do mato, revelando um estranho
animal que escondia e que, num repente, saltou o abismal de si e os olhos
aturdidos de raiva estalaram crueldade latente. Não foi um só instante-trevas e
estava agarrando o pescoço róseo do irmão, forçando-o a ralar na grama,
rolando os dois em agressões mútuas. Então caíram, por acidente, no lago sujo
e podre de esgoto humano do parque. Foi ali que Abel colocou toda sua raiva,
inveja, ódio; feito um pacote que precisava enterrar no fundo da lama. Em
segundos, o fraco Caim desfaleceu, mal cuidado de notívago que se restava,
amolecendo precárias resistências, em seguida de um golpe mais duro na cuca,
boiando então no lago fétido, feito um corpo de besta anônima. Não havia
ninguém por perto, a sondar o embate, e Abel, depois do ápice do destempero
e ainda com nódoa íntima, também andarilhou por rasos mil metros, até que
teve um desarranjo mental, um estremelique, um siricotico. Por estar em lugar
aberto de árvores, foi achado pela Guarda Municipal e levado a um Pronto
Socorro ali perto, quando acusaram um ataque de nervos, um desarranjo
cerebral seguido de um desmaio. O convênio médico foi acionado. Depois,
exames laboratoriais acusaram escoriações, disritimia, essas coisas.
Desde então que deram pelo estranho "sumiço"" de Caim. Para a
família era mais uma aprontada, mas a mãe ficara fechada em si e o pai, a

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pedir proteção divina ao que nunca saíra de casa sem avisar ou dar retorno,
nem nunca sumira por tão longo tempo. Depois de alguns meses, notas pagas
nos jornais, Polícia Federal acionada por tráfico de influências de amigos
políticos do clã, o pai, contente, anunciou, num jantar caseiro, que o filho
errante tinha sido localizado em rastro que deixara, pois voltara a sacar
valores nas contas correntes bem recheadas, usando cheques também, além dos
cartões de crédito. E o patriarca logo apressou-se em cobrir os rombos,
repondo, crendo que, pelo menos assim, de longe e ao seu prestativo jeito e
mimo de estima e apreço, estava sustendo aquele que sem motivo algum
abandonara o lar doce lar. Abel sabia que Caim estava morto. Só podia ser
coisa de ladrão ordinário se aproveitando da situação, usando os cartões,
coisa assim. Mas antes fosse um meliante abusado até ser pego, do que o irmão
vir a ser de novo o preferido, tomando recursos de seu espaço mal dividido.
As coisas não correram como ele tinha entendido, e, o filho pródigo depois de
comer o pão que o diabo do longe amassou, era agora, de novo, voltando, o rei
da casa, o queridinho da mamãe; eternamente perdoado pela exagerada
bondade e lisura humana do pai bobo. Marcou um almoço com o irmão. No dia
do encontro surpreendeu-se com os trejeitos do desgraçado; de novo enfeitado
de jóias de ouro que o pai lhe dera, com novas caras roupas de grife que a mãe
cuidara de lhe arranjar, mais outros talões de cheque, cartões de crédito, até
um citroen importado da França que ganhara de presente, pela volta. Uma
barbaridade. Parecia uma feliz criatura que ele, Abel, nunca conseguira ser.
Onde estaria o milagre, o segredo? Puxou conversa suave com o irmão,
cobrando eventual lembrança ruim que pusesse em risco sua tentativa ineficaz
de matá-lo. Mas o irmão só queria beber bem e muito, comer pra valer, fartar-
se, enquanto sondava, algo incômodo, algum lance de paquera, uma mulher
bonita de pernas e ancas, um rapagão másculo e viril. Abel mal continha em si
um novo ímpeto de fazer uma besteira completa, o chamado crime perfeito. Seu
irmão tinha ido longe demais. Tinha que pôr um fim àquilo tudo. Tinha que ser
mais prudente, ponderou, não deixar pista, vestígios. Depois de tentar, em vão,
passar um sabão no mano de raciocínio pequeno, vendo-o desinteressado do
assunto e pouco ligando pro curtume da conversa, mudou ocasionalmente de
tom e sapecou que ele deveria terminar o colégio, fazer uma faculdade, seria
bom para garantir o futuro. Lembrou que ele era doutor, tinha feito pós-
graduação até na Inglaterra e na Itália, que labutava sozinho na empresa do pai;
deu um teco de vão para ver se o irmão pegava no tranco, no eixo do diálogo
sério. Caim confessou, sereno e verdadeiro, que era feliz lá ao seu jeito,

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amando seres humanos, homens e mulheres, que adorava a liberdade de ser o
que era, a vida pegajosa das ruas, dos bares, dos bordéis. Que era assim que
sentia inteiro e vivo no rol da mais verdadeira existência, sem prumo, sem
diplomas, lucros, afazeres, muletas de quaisquer espécies. Ficaram no meio
tom dessa conversa fiada. Abel viu que o desmiolado do irmão não tinha jeito
mesmo, era caso perdido. Caim sentiu-se seguro e ainda não se lembrava de
nada, sendo como sempre fora; ele mesmo, sem tirar nem pôr. Mas Abel tinha
revisitanças no olhar duro, severo, mais algumas pesadas preocupações com o
saldo da fortuna da família. O quê iria fazer? Tinha que pensar direito, tramar
melhor.
Deixou o irmão nojento no restaurante e saiu nervoso, lépido, pois
o tipo ainda gabava-se de que iria para uma farra, um sarau lítero-musical com
os amigos boêmios. Abel saiu só, como sempre se sentira. Mal tinha um afeto
aqui e ali, por uma zinha qualquer. E se aparecia errado, sem querer, coisa
boba até, era chamado à responsabilidade pelo pai que então ficava outro,
diferente, severo; ou pela mãe que, de repente virava caínha. Em Caim tudo era
perfeito, até a imperfeição. Tudo era perdoado, apesar de ser um viveiro de
problemas de todo tipo. Não saía de sua cabeça o que os pais fizeram de
forrobodó para o falso Filho Pródigo, o gastador. Aquilo lhe batia fundo na
alma pisada, no coração partido; não fazia sentido. Voltou para casa reinando
ressentimentos. A irmã que amava às escondidas, tinha ido a um baile de
máscaras. A mãe tomara remédios para dormir, e o pai, estava na Sauna Rosa
de Sharon, com os patrícios judeus-lusos. Estava só, com o seu ser sozinho de
si. Era uma solidão estranha. Uma amiga sensitiva dizia que tinha uma solidão
genética, visceral, no seu "sentir" fechado em si, como se quisesse um cofre na
cabeça, tronco e membros. Era como a solidão do homem no espaço de sua
incompreensível insignificância? Deu-se a cismar: e se fosse como o irmão? E
se tivesse uma vida aberta, usasse drogas, vivesse a fanfarrear? Seu irmão, no
decorrer de mais de duas décadas, sempre se dizia um plantador sonhos, um
inventor do inexistente, um eterno aprendiz da alma humana, um "Sentidor"
como Clarice Lispector, uma escritora doida, a sua predileta, que jurava
adorar. O quê era aquilo tudo que mexia com suas entranhas? Nada fazia
sentido? Entendia muito bem de letras de câmbio, mercado de ações, cotações,
altas e baixas na bolsa de valores, exportação, e até tinha um rendoso box num
shoping do Morumbi onde vendia, para gringos, artesanato primitivo que trazia
do lugarejo chamado Bom Sucesso de Lavrinhas, aldeota do município de
Itararé, sua cidade de origem, onde crescera numa resga de mata atlântica

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virgem, entre animais silvestres e jandaias às pencas. Exportava essa arte
primitiva e quase em extinção, para vários países da Europa. Tinha visão, jogo
de cintura nos negócios. Não entendia era de vadiagens, de travessuras e nem
de se enturmar com biscates e malandros noturnos. O quê seu irmão tinha de
errado que não lhe dizia coisa com coisa? O quê significava realmente o
verdadeiro sentido de existir, pensou, confuso. Queria era ganhar dinheiro,
adquirir posses, ter bens por atacado, aumentar a fortuna do pai, casar-se, ter
filhos, ter seu próprio canto, seu ramo de negócio, sem sócios ou concorrentes.
Por quê o irmão gêmeo gastava oxigênio com putas e marginais, quando só ele
pegava no breu, levando a vida a sério? Até onde iria tudo aquilo? Não sabia
mais o que fazer. Falou com o Patriarca no dia seguinte. O velho tomava café
com leite e lia uma revista de Coimbra, Portugal. Quando puxou o troco da
conversa, sobre a divisão correta dos bens, inventário, heranças, partilhas,
essas coisas, até os afazeres na empresa, cutucando que o imão cabeça mole
precisava se emendar, o pai solenemente e sem alterar o tom de voz ou dar
ênfase de interesse no assunto delicado, mal explicou: Viera pobretão ao
Brasil, morara em pensão, passara fome, fora discriminado, a muito custo e
com muito sacrifício de prazer e lazer fizera um fortuna razoável, mas não era
verdadeiramente e por inteiro FELIZ. Queria ter tido chance e tempo de ter
existido melhor, aproveitado com mais deleite o desfrute dos dias, os prazeres
todos da vida, relegado que foi a essa evolução jovial no cântaro das
circunstancias. Via o filho mais velho com grande respeito e o admirava
imensamente por isso. Mas via-se um pouco também, nas loucuras juvenis de
Caim, sempre crianção, doce, pueril, sempre humanamente abandonado de
interesses próprios, uma espécie de cigano loucamente encantado com as
moendas da vida. Queria ter tido a chance de ser como os dois ao mesmo
tempo, mas só tinha vivido pelo trabalho, pela poupança, pela purgação, pelo
lucro a qualquer custo, a qualquer preço; sem extravagância ou lazeres
quaisquer. Seu filho caçula por alguns momentos extravagantes fizera o que ele
nunca tivera coragem e arranque para fazer. Por isso tinha um respeito especial
pelo menino, que vivia livre sem medir consequências. Falou isso e começou a
comer, passando manteiga no pão sovado, como se dando um sinal de caso
encerrado. Era o seu jeito. Abel ficou puto da vida. Foi então chorar pitangas
com a velha genitora mal refeita de um câncer, na casa dos 60 anos.
Queria se fazer entender, naquele conflito de interesses.
Cobrou da mãe direitos iguais de tratamento e manifestações de afeto e
carinho, disse-se injustiçado com aquilo tudo, pois que era de confiança,

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trabalhador esmerado, um cidadão-contribuinte especial e exemplar. A velha
concordou mas também caçou a cisterna de lembranças. Disse que ele, Abel,
tinha nascido um pouco antes, no parto único. Como o segundo varão não vinha
logo em seguida; como ela poderia morrer naquela situação intra-uterina de
desconforto e dor, fez promessa de tratar aquele que poderia morrer na
placenta, levando-a consigo, como um Anjo. Então, como se por uma ordem de
Deus pai, as entranhas de presto obedeceram a uma ordem invisível superior, e
tudo, afinal, acabara bem. Assim, agradecia Abel por ele ter sido quem era, e
que buscasse compreender o irmão mais novo, fosse protetor dele, perdoasse-
o encarecidamente, sem desacorçoar nunca. Quase que exigiu essa serventia
crucial sob juramento. Que Abel tivesse paciência ao extremo, que um dia esse
jeito maroto do irmão boêmio mudaria, que o tempo era o melhor juíz e justo
acomodador de situações, motivos e interesses. Seu irmão era meio doentinho,
frágil, aberto, carinhoso com todo mundo e ainda muito culto de ler tudo, de ler
feito uma sina, um capricho de destino crucial, como a querer fugir de alguma
coisa. Abel saiu do quarto da mãe mais desabado e rude do que bruscamente
entrara buscando porto de encalhe. Emburrara. Foi a cata da irmã como ombro
amigo, mas Madalena estava em intimidade com um dos tantos amantes
namorados que discretamente, feito uma histérica doentia, cuidava de
entricheirar num canto da enorme mansão de tantos quartos, sem querer
princípios ou ressentimentos. Abel pensou com um parafuso solto, ou um
parafuso a menos. Estaria ficando louco? Um ódio foi lhe dilacerando o peito.
A dor cria gume porque não há sensações no esquecimento. Era pagar pra ver.
Ficou uma onça acuada. E o ser humano quando não cabe em si, é risco de
alma trincada, coração vazio. O tempo cerziria danos nos trapos de seu ser
enfebre? Não há ganho na dor, mal sabia ele. E deixou a masmorra do coração
espremer um nó dolosamente macerado, quase lanho imperceptível no olhar
truncado. Só havia uma única saída: teria que agir com coragem e valentia,
buscar uma solução cabal, peremptória. Seria capaz de tanto, ousaria num
gesto fatal, o golpe completo e definitivo? Cabeça com ódio, oficina de
satanás.
Quem o poderia ajudar nesse ditame? Foi quando pensou em
concatenar um falso seqüestro; sim, era isso! Arrumaria as coisas em tal
ordem, com vantagens, forjaria o arremate de uma situação montada, seu irmão
levaria um susto, teria que tomar tino da situação, tomar jeito, mostrar
finalmente, quem realmente era, ou não. Teria, pelo menos, que dar as cartas,
mostrar a cara. Os pais veriam então, com quem estavam lidando, que Caim

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não era boa bisca. Depois, ele, Abel, com o valor levantado, teria sua paga por
todas as injúrias, as batalhas solitárias em prol da empresa de câmbio e
valores. A mansão tinha muitos cômodos, alguns desativados ou nunca vistos,
além de partes do sótão vazias. Alguns lugares abandonados há tempos. Num
desses espaços mais distante e recluso, se instalou de maneira segura. Montou
uma extensão do aparelho telefônico para ouvir sem precisar ser ouvido, no
sentido de acompanhar as atitudes ocasionais pela reação da família, caçou um
binóculo antigo, um gravador de rolo, finalmente sumiu de circulação, ilhado
dentro de casa mesmo, mas fora do convívio do lar. Depois deu telefonemas
com voz alterada, deixando mensagens no gravador a respeito de preços,
locais, exigências, ainda, em seguida, cartas escritas com letras arrancadas de
jornais velhos. Em pouco tempo os pais souberam-no refém, correndo risco de
vida, em perigo, como bem articuladamente ameaçara, e até lidaram bem com
a questão do resgate alto. Em poucos dias, com muito tato e lucidez, numa
negociação espúria, forjada, mas decidida com competência que se lhe era
peculiar, vendeu sua própria liberdade, já sondando, entusiasmado, voltar para
casa e ser recebido com baita festa, como o seu irmão o fora. Estava na
expectativa. O pai, generoso, não pechinchara um tostão, uma pataca. Tal fora
o crime perfeito, que pode receber tranqüilamente o dinheiro exigido e ainda
pode aplicar, com competência, em bancos suiços. Depois de telefonemas em
códigos, transferindo o quantum, recebeu a senha da conta em Viena, Áustria.
Valia bem mais que os anos de dedicação exclusiva a manter o rico acervo do
clã. A importância, alta, seria uma espécie de salvo conduto, caso o irmão
arredio continuasse a dilapidar o patrimônio da família, fazendo estrepolias,
besteiras. Resolveu então, de fingir que voltava para casa, já que esperava uma
festança e tanto. Se um filho pródigo desmiolado tivera um forfé, imagine ele,
então, um seqüestrado? Mas, ponderou, não podia simplesmente sair dali de
um cômodo secreto e ir para o seu aposento. Teria que pensar bem, ser
discreto, caprichar no final feliz de sua bem montada orquestração. Os detalhes
finais tinham que ser matematicamente calculados; tinha que agir com frieza,
não estragar tudo com improvisos impensados. Esperou os parentes se
recolherem à noitinha, e saiu pela rua a fora, sem fazer alarde ou se dar ali no
palco do lar. Ganhou a alameda livre, sem lenço e sem documento, barba por
fazer, mal asseado. Assuntou: iria para uma descalça periferia qualquer de São
Paulo perdida em violência e dezelo público, lá se enturmaria de arranjo,
pegaria cheiro de gente simples, pisaria o barro da pobreza, estaria entre
esgotos e céu aberto, ganharia a estampa de um chulo e surrado, pobre,

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perdido, refém de meliantes, podendo então, melhor decomposto de sua
essência vital e mal enjambrado que se restaria, voltar para casa com
verdadeiros trejeitos de um ex-refém recém-liberto. Sim, era o mais certo a
fazer. Ali mesmo, na Alameda Santos, esquina com a Avenida Paulista, tomou
um ônibus qualquer, sentido bairro, abandonada zona sul da cidade. Só desceu
no ponto final, Jardim Angela, uma área de divisa com outro carente
município, pobre espaço geográfico, lugarejo perigoso e abandonado pelos
corruptos poderes público ditos neo-liberais, progressistas. O lugar cheirava a
morte, lamento, dezelo social, sem qualquer infra-estrutura elementar. Nunca
estivera ali, nem imaginava que a grande São Paulo, em potencial econômico
maior do que vários países de América do Sul, inclusive Argentina, teria uma
micro-etiópia ali. Num boteco suspeito e reles, perto de uma favela mal
cheirosa, pediu uma cerveja preta com gemada. Estava meio maleixo. Era o
lugar a lhe dar náuseas? Era o triste cunho da pseudo-capitalista realidade
brasileirinha ali exposta de forma nua e crua? Conteve-se, num repugnar
disfarçado, não apenas pelo gosto amargo da cerveja quente, espumosa, mas
do copo de plástico com nódoa, além de moscas entre os pastéis estranhos,
rapaduras velhas com musgo verde, mais uns tipos sisudos, altamente
suspeitos. Não conhecia bem aquela realidade paulistana. Ouvira falar, mas
acreditava ser papo doentio de comunista. Passou um tempo fiando prosa ali,
enrolado difícil papo furado, ouvindo conversa fiada, desconexa de seu mundo
de negócios, sondando um bilhar próximo, numa espécie de adjacente meia
feira nordestina barulhenta montada às pressas, uns restos de seres humanos
disformes, cheirando a marmitas azedas, creolina velha, mais um perfume
barato que ia e vinha nas narinas de ricaço, uma rudeza estética de casebres
toscos e olhares sombrios, tristes, como se de rejeitos sociais, descamisados,
excluídos do capital acumulativo sem vezo ético. Quando deu-se por si,
naquele lugar como que se enfermo, já estava algo alcoolizado no repetir as
doses, e a colcha de retalhos da noite ganhara ares noturnos diferentes
daqueles com os quais se acostumara. Procurou um orelhão público para ligar
para casa, forjar a libertação distante, dar as boas novas com voz trêmula, de
enfastiado; alertar que se preparassem festeiros para tê-lo de volta, são e
salvo. Contaria dos falsos dias infernais que vivera, inventaria o inexistente,
mentiria com estilo e competência, exageraria e faria tipo de filho sensível e
carente. Talvez até chorasse uma melancolia qualquer. Quando o horizonte ao
longe, entre favelas altas, vestiu as calças do breu, sentiu-se mesmo um refém
da pobreza do lugar esquisito onde se achava; um refém da miséria humana, da

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mentira que há na violência somada com a mentira de uma antiga dívida social
impaga desde um antigo l3 de maio, e adiada ainda por décadas, depois de um
funesto golpe militar. Achou-se um estranho no ninho daquelas sofrências. Ali,
a esperança não era a inteligência da vida, pois os pobres garraios eram bucha
de ganhão do lucro fácil, lucro impune, na ladainha hedionda da chamada falsa
oferta e procura. Que dor silente era aquela que os miseráveis suportavam
como cândidos carneiros tosqueados, baldeando desígnios e sublimações
daqui para ali, de migrações para discriminações, sem uma bandeira de luta,
de revolta, ou uma revolução pelo sagrado direito de sobreviveram com a
mínima dignidade possível? Quase teve vergonha de si, por não conhecer
aquela espécie de sub-gente brasileira. A realidade ali estava nua e crua,
concluiu, em desalinho, penalizado de tamanho ver insano.
-0-
Enquanto sondava um telefone, com medo e urgência de procura
para se livrar do doloroso lugar, de despertar suspeitas e logo criar a gostosa
expectativa de se anunciar livre em casa, eis que, subitamente, ouviu uma voz:
Mas, então, doutor Abel Sidrack Jordão, como é que vão as coisas? O que é
que o senhor faz por aqui, nesse fim de mundo, nessas paragens do dianho,
onde o judas perdeu as botinas? - Quem era aquele tipo alto, negro, forte,
musculoso, que mirava-o com olhos de severidade mal dissimulada e um ponto
de interrogação na face, entre o ser e o não ser? Assustou-se. Soou-se lhe um
alarme instintivo no corote do psico-somático. O coração tamborilou um
elástico de preservação no cadinho do tronco. Compreendeu melhor a situação.
Percebeu tudo. Era um guarda-noturno matuto que tinha sido demitido por justa
causa pelo seu pai, muitas luas atrás, quando, ao ser acusado de negligência,
denunciara que Caim, de madrugada, levara putas das redondezas de
meretrício para dormir na casamata do subornado vigilante noturno. O pai
pensara que era uma fala falsa do tipo humilde, e o demitira sem mais nem
menos. Abel nem esboçou arremate de intenção para criticar o irmão
desleixado e imaturo; depois, tinha fosfato e oxigênio para gastar com coisas
mais importantes, não com querelas triviais do encardido mano soprado pela
sorte, protegido pela mãe que fazia vistas grossas e em quem o ancião sempre
punha imedida fé. Pois ali estava o ex-funcionário, bronco de tudo, ranzinza,

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quizilento de intenções, 38 smith na cintura, parecendo louco ou drogado,
mostrando estado de penúria, ares de ortodoxa cobrança radical. Tentou
mediar a situação, negociar. Era bom nisso, sempre fora. Tentou puxar eito de
papo sadio, para depois dar um bote qualquer, estratégico, e dar o fora
rapidinho. Mas ali estava como realmente se sentia: carente e abatido, com
ares de mal-nutrido, mal amado e mal dormido, fora de seu contexto social, de
seu habitat. Presa fácil, qualquer um sentiria isso. O ex-guarda-noturno nem se
fez de rogado, deitando falatório, bronco ao extremo. E cobrou que ele nem
tivesse movido uma palha pra ser justo, ser verdadeiro e coerente. E então deu
a sina final: iria retê-lo ali, num barraco qualquer, até que pagassem, e bem,
pelo seu resgate. A situação agora era real. O filho do velho cego de ver as
estrepolias do herdeiro louco, iria sofrer nas mãos dele. Foi quando Abel viu-
se finalmente acuado, em perigo. Não regateou; não era de seu feitio. Não
estava acostumado a receber ordens, nem se sentir em situação de
desvantagem, ou condição inferior. No entanto, não se fez de rogado. Era bom
de negociação e, de uma forma ou de outra, sairia ileso. Aliás, tinha até
treinado uma suposta negociação difícil, quando montara o seu próprio
seqüestro, levando vantagem até nessa forja de circunstâncias. Em pouco
tempo de marotices e impropérios, o tipo, acuado pela bela proposta,
concordou com o oferecimento inusitado: e recebeu do filho do ex-patrão, as
chaves da casa que era quase um palácio. Era o mínimo que podia aceitar de
paga. Iria fazer uma limpeza, com sua quadrilha especializada. Abel ficaria
retido ali por algumas horas, vigiado por comparsas marginais do sujeito,
depois, então, poderia sair, voltar para o lar. Não pensou em maiores riscos de
parte a parte, pois sentiu que os meliantes eram de aparência primária, meros
traficantes de drogas populares e não tinham maiores planos de vôo, pelo
menos isso ele deduziu, sem perceber, no afã da decisão momentânea para
safar-se, que tinha feito uma besteira, criado uma situação de enorme risco
para os queridos familiares, mesmo que, para, agora, salvar realmente a vida.
De madrugada, quando sondou-se livre e largado pelos favelados,
descendentes pardos de migrantes nordestinos, pulou fora do barraco fétido,
garrou uma estradinha, depois uma ruela descalça e, quando achou um táxi
perdido ali, voltou para casa, pulga atrás da orelha, cismando alguma coisa
estranha que não conseguia decifrar de chofre em si. Tinha acontecido algo de
ruim, de pior do que projetara? Estava livre de uma situação que muito bem
montara, mas a consciência não lhe dava trégua, continuava pesada. Depois de
rodar por mais de uma hora, saindo da periferia perigosa, desembarcou na

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esquina do lar. Desceu a travessa da mansão e ouviu sirenes, alarmes, não a
festança enorme de recepção, como esperava. A polícia estava em polvorosa
ali; não havia sequer um mínimo festim do que esperava receber, concluiu
aturdido, desconfiado. Feito um louco, apavorado, apresentou-se como um
seqüestrado recém liberto da trama ilegal e de volta inteiro.
-0-

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PARTE DOIS
COMO UMA ESPÉCIE TAMBÉM DE FILHO PRÓDIGO,
finalmente retornava ao lar. Mas não havia festa. Nunca haveria? Tudo soava
dolorosamente esquisito, estranho, irreal. Um silêncio andaime pairava no ar;
seu instinto avisou sem ele mesmo reconhecer código identificador. Um tenente
meio obeso da Rota, ramo sórdido da Policia Militar paulista, após sabê-lo
membro identificado da família, inteirou-o das havências trágicas: o
Condomínio Balthasar tinha sido sido invadido, a mansão deles era o alvo
maior - os meliantes pareciam conhecer o lugar, as chaves e senhas de
segurança, pois porta alguma tinha sido violada - tinham rendido os sonolentos
vigias, os funcionários. Pior: o velho patriarca tinha esboçado reação e fora
vitimado fatalmente, com um balaço no coração doente. Foram em busca da
dona da mansão. Mas ela, ao saber-se ameaçada e os seus entes queridos, não
agüentara a violência da invasão e tivera um tranco no peito; na cama do casal
sofrera um enfarto fulminante, nem dando trabalho aos marginais. E o maldito
irmão? Abel perguntou baixinho, contendo uma explosão, pois queria-no
também acabado, finalmente. Mas o desgraçado que dormia bêbado a solto
numa casamata atrás da garagem, sequer fora notado ou se inteirara da invasão,
e assim tinha escapado, junto com duas mulheres da vida fácil, por puro
milagre de irreconhecimento dos bandidos apressados. Levaram cartões de
crédito, dinheiro de um cofre pequeno que arrombaram, cheques especiais,
pratarias antigas e caras, cristais finos, jóias do acervo do clã, tudo o que
puderam baldear no carro importado, no citroen francês de Caim, e numa velha
kombi de serviços que estava estacionada no jardim, e que o podador de
roseiras usava para fazer compras ou limpeza de entulhos. Servira também
para os ladrões levarem os computadores, aparelhos elétricos e eletrônicos,
além de quadros caros e objetos de arte, alguns de valores inestimáveis, por
serem barrocos mineiros do tempo das insurreições por causa da histórica
Derrama. Os funcionários da mansão, refeitos do susto, mal tiveram tino para
reconhecerem o herdeiro seqüestrado de volta ao lar, pois o aparato militar e
bélico era grande e a acontecência ali era muito mais cruel, com os corpos
cobertos com lençóis sendo fotografados, prontos para serem levados ao
Instituto Médico legal. A irmã Madalena tinha estado a noite toda num motel
próximo com um dos vários namorados, e assim, por sorte, escapara. Abel
conteve um espasmo de dor que o lancetou na alma transida. Havia uma mágoa

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contra si mesmo, mal administrada. Livrar sua vida de um verdadeiro
seqüestro, custara caro, afinal, pagando um alto preço de sangue e dor. A
consciência pesava, o cérebro doía, o coração não agüentou ver sequer os pais
sendo levados para um exame qualquer de óbito. Não era aquilo que pretendia,
por Deus. Alguém tinha que ser o culpado indireto. Pôs a culpa também no
irmão que sequer para cuidar dos pais servia, o traste, inútil. Transferiu
novamente parte do ódio, da mágoa mal contida em si. Embruteceu-se como
nunca. Falhara, de alguma maneira, concluiu, não acreditando. Tarde demais.
Tinha que matar seu desafeto de sangue. Quando seu irmão finalmente apareceu
do bodeado que se restava, quase o atacou com os ferros da lareira de enfeite.
Mas conteve o ímpeto. Quando sua irmã voltou ao lar, abraçou-a e chorou mais
de raiva do que de lamento pelo ocorrido. Tudo aquilo iria tornar ainda mais
pétreo seu coracão abalado. Recebeu solidariedade de amigos e vizinhos, de
parentes e autoridades, fazendo pose e reinando por ali, feito primogênito
ferido, na verdade sentindo-se um cão vadio a mendigar justiça, presenças,
vestígios. Estava um lixo.
Depois de sete dias de luto, dos rituais sagrados antes do
enterro, depois de sepultados, o Dr. Salomão abriu o testamento e tudo estava
dividido em três partes iguais, com ele, Abel, ficando com o encargo e missão
de gerenciar os negócios do clã, e ainda ser o guardião do irmão
desembestado, a quem deveria proteger a todo custo, a qualquer preço. Tinha
um silêncio pertubador no comportamento, fechado em si para funcionários da
empresa de ações e do ninho do lar ainda abalado. Pensou que o irmão nojento
se arranjasse sozinho, como pudesse, ponderou. Saberia que Caim gastaria
tudo o que herdara da partilha, depois ainda viria a querer tirar sua parte,
perdido que ficaria, sem eira e nem beira. Que morresse de fome, doente,
abandonado. Com ele o tipo não tiraria dedo de prosa, nem lhe daria trela. Que
se arranjasse como pudesse. Não lhe confiara um só tostão; só tinha para ele
desdém, ressentimentos, mágoa, trauma frustração.
Abel resolveu dar um tempo, fingir umas forçadas férias, sair de
circulação por alguns meses. Tinha que encontrar arranjo pro seu íntimo
transido. Seu irmão parecia uma canga, uma ferida no seu calcanhar, uma
pegajosa imposição legal de partilha. Deus do céu, parecia era praga de mãe,
ou de destino? Até onde iria aquilo tudo? Nunca teria um fim essa desgraceira?
E nem podia agir mais. Caíra em si. Era aquela a sua cruz? Nem pensou na
hipótese remota de uma outra idéia de jerico, escaldado que estava por
arriscar tanto, provocando o que provocara, sem ninguém nem ter coragem de

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pôr desconfio. Parecia coisa do cruel destino ser anjo e demônio do irmão que,
como uma espada, feria e acontecia; tinha poderes como se um mágico entrão,
agindo em legítima defesa da liberdade, feito uma pedra que nunca criava
musgo. Por dias sentiu saudades dos velhos, curtiu e chorou escondido,
mostrando discrição para não parecer indiferente. Não mais apareceu na firma,
passou a esconder-se de si mesmo em hotéis baratos do centro velho da
cidade, em fortuitos programas rápidos com prostitutas de ocasião. Sentia-se
penalizado pelas dolorosas circunstâncias, vítima do circo de horror que
montara na coincidência do destino cruel. Era um pobre coitado e inútil agora,
culpa no cartório, um zé-mané, um joão-bobo queimado no fogo do que criara
para livrar-se do perigo que o mano representara, e que uma trágica situação
provocara. Depois de arredio, por uns tempos sumidos, foi voltando para
dentro de si mesmo, depois, retornou para casa aos poucos, voltando à
prestação, aos pedaços, galgando a dura realidade num caminho inverso que
nem sabia se ainda valeria a pena, como ente, como dejecto de ser humano
arrasado. A irmã de criação que amava às escondidas, frustrada com tudo
aquilo que ocorrera, voltara para Londres, onde iria morar com uma amiga
com a qual mantinha estreita correspondência. O irmão pródigo e metido a
besta, continuava a gastar adoidamente o que recebera de herança imerecida.
Pelos movimentos de idas e vindas, farras e disparates de situações, como um
louco gastador inveterado, em pouco tempo estaria sem um só níquel. Abel
colocou um detetive profissional de confiança para vigiar Caim, e uma outra
pessoa para rastrear as gastanças e saldos do irmão. Tinha relatórios semanais,
estava inteirado da situação; bordéis de homosexuais, bancos de drogas com
dependências de todos os tipos, inclusive heroína, saunas mistas com muita
bebida importada, viagens compradas, até boates fechava e mandava chamar
os amigos do alheio, feito um babaquara marajá do dianho. Ora Abel sentia
inveja do irmão naquela sodoma e gomorra da noite paulistana de muita
prostituição infantil e corrupção política em todos os níveis, ora uma vingança
saía da mediocridade de sua cruz e sina íntima, como se brigasse entre o bem e
o mal, o ataque definitivo ou uma rejeição solene que o cerceava de agir. O
pária estragara seu golpe, deu de pensar assim, pois doía menos; até mesmo
para não gastar-se em outras querelas intimistas, desparafusadas. Era repassar
a dor, transferir responsabilidades e tudo selava menos no pântano da
sofrência. Se pudesse mataria mil vezes seu irmão. Já o tinha matado dentro de
si, por mais de três décadas atrás. Mas era um morto-vivo que o incomodava.
Mexia com suas estruturas. Aquele era mais forte do que ele, como se uma

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muleta no ego, na carne viva do lanho íntimo. Até onde iria aquilo? A dor por
testemunha.
Com todo o rigor dos sofrimentos, eis que Abel viu-se
abatido, revolvendo canteiros na alma, repensando a intenção de fazer uma
consulta médica, no sentido de, com um exame generalizado, cuidar-se do
físico, pelo menos; dar uma geral antes que a situação de desconforto interior
piorasse. Vinha sentindo umas pontadas na virilha, um fisgar que latejava,
pondo-se a temer por um desarranjo, uma doença ruim, venérea, ou coisa pior.
Era melhor cuidar-se, não custava nada essa precaução. Voltou para a mansão,
reabilitou-a com mobiliário novo, colocou quadros caros com fotos dos
genitores nas paredes repintadas, fez os necessários exames médicos
pretendidos, procurando desfazer-se de lembranças pesadas, tirando da cabeça
o irmão renegado, rejeito social, ovelha negra do clã. Enquanto os exames
eram avaliados, cuidara de ligar para a saudosa e querida Madalena, em
Londres, e dizer da antiga paixão mal contida em si; precisava daquela
bandeira de estima como prumo pro seu desmanche íntimo. Pensou em largar
tudo, chutar o balde, entrar para a vida fechada e reclusa de um mosteiro
qualquer, um convento que fosse. Na verdade, restava-se algo perdido ainda.
Mas Madalena não estava. Velejava, com um amante grego, pelas águas do
Mediterâneo. Nunca estaria?
Caim continuava feliz ao seu jeitão manhoso, ao seu estilo. A
vida era o vapor barato das ruas comuns, como um eterno baile perfumado, um
circo armado de prazer, uma festa infinita feito gozo eterno. Sempre rodeado
de belas prostitutas caras, de másculos varões de teatro de vanguarda, regados
a todo tipo de comes e bebes, mais pomposas viagens pela costa brasileira em
navios alugados de agentes suspeitos, com a soma de bons músicos,
dançarinos de balés clássicos, traficantes disfarçados de autoridades, todos
liberados em verdadeiras orgias tropicais a bordo, bordéis explícitos. Parece
que, para Caim, a vida era um imenso bordel excelência. Só que ele se divertia
pra valer, era como se um pária do contexto todo, tinha seu imenso prazer
dioturnamente, enquanto os outros bordéis eram falsos, disfarçadamente
sociais, meros totens de alguma forma, onde os pseudo-seres se prostituiam de
algum outro jeito também, quer pelo diploma, quer pela torpe farda verde-
oliva, quer pela gravata de seda contrabandeada de escravos (dos chamados
tigres asiáticos) quer pelo terno bem cortado, pelo lucro, pelas riquezas
injustas as quais se referia São Lucas, pelas riquezas impunes, com novos tipos
de casagrandes, senzalas e neo-escravos pós-modernos, de eras consumistas

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globalizadas e seus enormes oligopólios, inumanamente liberais. Via os
executivos como boçais, cobaias do espúrio “capitalhordismo” selvagem,
tupiniquim, via a exploração barata em poses, salários vergonhosos;
exploração absurda da mais valia, como se o trabalhador brasileiro fosse de
certa forma um mero expectador da história de exploração, desde os tempos
coloniais e dos sórdidos anos sessenta e setenta, com uma canalha ditatorial
aleijando verdadeiras reformas sociais de base.
Caim, quando ouvia empolados discursos oficiais, como se a
razão dos palácios produzissem neuróticos e loucos, tinha um nojo paisano,
civil, ético-comunitário. Cansava-se da fala fácil dos metidos a burgueses, e,
pior, da arraia miúda da classe média burra que pensava que pensava, que
achava que era o que não era, sempre enganada por políticos corruptos de
igual estilo e idêntico “modus operandi” vivencial; tolo, inócuo, estupidamente
consumista e neo-bobo. Caim tinha a pureza das árvores sósias e baratas, a
qualidade essencial das grávidas e córregos bucólicos, a dignidade de
continuar resistindo (em sua extrema sensibilidade) sem máculas sociais ou
interesses que não fossem coletivos, no sentido plural de existência. Era um
ser humano se matando aos poucos, como se a se punir pela crônica
insensibilidade dos podres poderes. Mas, quem falou que ele queria morrer
de-vereda? Era feliz ao seu tempo, ao seu jeito perene de casulo que abrira-se
num leque de compreensões únicas, simplórias mas essenciais. Sabia ao seu
irmão mais velho como mais um fruto do meio, de uma sociedade vil,
hipócrita, onde o que valia era uma certa espécie de “status” de sítio; a
discriminação besuntada de pose de variadas classes sociais relapsas com a
maioria carente, um suspeito estado público (na verdade privado) que não
respeitava loucuras artísticas como denúncia, e nem lágrimas como lamentos
de pesares. Mas ele era diferente. Quando não podia ser forte, procurava
manter-se ainda mais humano. Não carecia de nada, a não ser a mistura com o
povo mestiço, a fala comum do povo, a vala sagrada dos artistas anônimos; o
pão e o vinho na liturgia das madrugadas com tardanças de todos os tipos.
Queria saber da pétala pura de uma pele anexa, qualquer sexo que fosse, desde
que pudesse olhar nos olhos da companhia e ser compreendido, falar por
gestos, como mágico, tocar e ser tocado, amar e dar o melhor de si, no amor e
na dor, feito um apaixonado pela beleza que há no simples. Que Abel tocasse
seu ouro fácil, sozinho, feito um pirata urbanóide, que ele, de per-si, tocaria a
gaita fácil na lida com os especiais, entre garagens de barcos, cartas de
suicidas, bandeiras vivas de casas de tolerâncias. Ser poeta era sua maneira de

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ser-estar-permanecer sozinho. Fazia Poesia para ter companhia. Era essa sua
canga. Não passaria em brancas nuvens pela vida; não queria, nunca, perder a
lição da maravilhosa viagem de existir. Tinha sempre em si, uma solidão-
albatróz; nunca preenchida por inteiro, como se ao estar com sua “troupe” de
anônimos, estivesse de frente para um mar com naufrágios íntimos.
Abel fez os exames de praxe, repetiu coletas de sangue,
foram exigidas revisões de urina e fezes cobradas pelos amigos médicos do
convênio caro. Foi quando seu mundo caiu. Foi quando se sentiu traído por
Deus. Onde já se viu aquilo? Seu antigo médico de família, Dr. Adamastor,
comandara um aparato demorado para tirar dúvidas, entre peregrinações
cansativas. E trouxera uma cruz em forma de resultado. Os abalos psicológicos
de um trauma com seqüelas, deram à luz não à uma flor de lotus na lama, mas à
uma sentença: estava com câncer na próstata e teria, se tanto, cinco ou seis
meses de vida, pois houveram ramificações. Teria que haver uma seqüencia
químico-laboratorial de tratamento emergente. Mas a doença era um pacto
terminal. Essa pontada cruel do destino algoz foi a gota d'água. Foi demais.
Garrou a vagar pela enorme Avenida Paulista, feito um solitário ermitão
urbano, dilacerando nas entranhas, já sem dono. Caminhou horas a fio, como
um errante derrotado. Mal comeu um pastel ou provou uma cerveja preta.
Estava depauperado, abatido, fronte em petição de desacorçôo. Então era
praquilo que vivera? Maldito fosse Deus e todos seus enviados para a colheita
infame! Deu-se a blasfemar em público, feito um louco. Não era mais dono dos
cursos de si. Parece que era um rio novo e as torrentes vinham lanhando as
margens, oprimindo-as. Era um dejecto assim. Nada mais tinha a ganhar ou a
perder. A sorte tinha sido lançada. Assim estava escrito. Depois de muito
vagabundear, como um mendigo, achou, sem querer, o rumo de casa, feito um
tonto maltrapilho. De presto foi reconhecido, e inda informado que o irmão
caçula entrara em seu recanto, e estaria dando uma festa de arromba na
garagem enorme do condomínio. E os notívagos parceiros eram
animadíssimos, se bem que estranhos. Desde a esquina de casa que vinha
ouvindo mesmo um rock pesado dizendo de pedras que rolavam. O vigia pedia
desculpa esfarrapada por não ter podido evitar a invasão coletiva de
estranhos. O atarantado Abel perdoou, pois estava acostumado a ser sombra, a
ser mero coadjuvante no teatro de absurdos que se tornara sua havência.
Quando morresse, então tudo faria sentido, seu irmão lucracia ainda mais.
Maldita a asa torpe do destino, pensou consigo, mal aceitando a dura sofrência
que fingia não acreditar, quase que renegava. Entrou emcasa feito um robô. A

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nova governanta, Miriam, perguntou se ele queria algo. Mas ele queria era ser
dono de todas as coisas que regem o maluco jogo-teatro do mundo injusto.
Queria era mais álcool, talvez heroína. Mas não tinha esses canais de procuras
para essa fuga que nem entendia como hábil. Garrou o bem cuidado quarto dos
finados pais que buscara recompor com muito carinho e respeito, deixando-se
cair na cama de casal, aconchegante. Lá reviu pertences íntimos de toda
espécie. Chorou então, como desaprendera de chorar; chorou encruado como
um feto mal recomposto. Chorou escondido de início, até vir a suave mão do
sono (a lhe recompor o espírito angustiado) a lhe roçar as pesadas pálpebras e
ele então poder ceder, desmaiar vencido, cansado, presa fácil na vida que tem
suas jogadas bruscas e às vezes inverte regras, monta palcos ou cartas
marcadas de enfrentamentos de toda sorte. Quando era madrugada entregue,
quando passou a dor imediatista que há na derrota, quando passou o fogo da
bebedeira exagerada, que Abel acordou outra pessoa. A verdadeira? Quem era
ele agora? Um resto de nada? A festança reinava ainda forte e firme lá fora,
feito um entrudo temporão. Levantou-se lento, andou dois-por-dois, como se
não quisesse acordar daquela espécie plangente de dolorosa letargia,
dolorosamente onírica, e, sem querer, viu-se no espelho em forma de ovo:
estava um lixo. Jogado entre lembranças e uma ressaca que lhe tirava o tino
essencial de um existir pleno. Dirigiu-se, furtivamente, para uma velha
casamata atrás dos aposentos laterais, das suítes de visitas da mansão. Lá
encontrou o selo que precisaria para compor um quadro final. Tomou a arma
(contrabandeada de Israel) com a mão direita. Mas já não era ele mesmo quem
fazia aquilo; era alguma coisa em si, feito um traste, um anjo vingador, um ente
mau, um zumbi. Desceu para o jardim lembrando das tantas chances que tivera
para tomar uma decisão cabal e não tomara antes. Jogar o seu “outro lado”, seu
maldito irmão, da sacada; atirá-lo de bicicleta na piscina com defeito,
empurrar do parapeito da janela sem guarda de segurança; colocar vermes no
suco de abacate. Mas sempre surgia alguém, o rogo do pai atento, a
interferência providencial da mãe, a sondagem do capataz intrometido. O
destino lhe era um muro. Mas um destino estava em suas mãos agora. O destino
era ele e o que quisesse, o que saísse finalmente de si. Garrou o sentido da
garagem lotada como se fosse um Visitador diferente, o Anjo da Morte.

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FINAIS OPCIONAIS
Final Infeliz
Final Feliz
Final Trágico

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01)Quando adentrou ao local, foi que viu: haviam homens copulando com
homens, mulheres nas suas intimidades róseas, danças orientais; uns tipos
esquisitos se drogando nas veias expostas, outros elementos gritando jogos em
lances que não compreendia num primeiro momento. Quis parar o bordel do
mundo. Quis apertar um botão, dar descarga, mas era tarde, muito tarde. Quis
desligar-se daquilo tudo. Onde estava? Aquilo parecia a ante-sala do inferno.
Era muita podridão para o seu tamanho Ver de falso moralista. Viu-se
desapercebido. Sentiu que estavam todos aloprados, não o iriam notar.
Resolveu pôr um fim naquilo tudo, não nas aberrações, mas no seu Ver. Havia
um improvisado palco de engradados de vinho de laranja perto. Empurrou o
mímico para fora, tomou seu lugar e gritou o mais alto que pode, pelo nome do
irmão Caim; sua cruz, da qual ali, finalmente, iria se livrar. Quando foi notado
pelo irmão preocupado e sua turma de desajustados, era tarde demais, muito
tarde. Abel, então, ao se ver finalmente reconhecido e observado com a total
atenção de todos, apontou a arma para o ouvido direito e, sem pestanejar,
apertou o gatilho, deixando, para sempre, seu irmão Caim livre e muito rico.
-0-

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02)-Abel, trôpego, entrou no horrendo circo armado feito um prostíbulo em sua
garagem, mas não reconheceu ninguém. Eram todos estranhos, desconhecidos,
marginais, prostitutas, gente que nunca vira em sua vida. A ralé de pústulas dos
cancros da sociedade. Com quem seu irmão louco se metera? Como se
rebaixava tanto. Brandiu a arma na mão direita, mas os tipos estavam
comprometidos com drogas, sexo, luxúria, vaidade, gula. Atirou para cima e
então um silêncio crucial vestiu o ambiente cheirando a sexo velho e urina
recente. Não podia matar todo mundo, mesmo sabendo que ia morrer. Então
seu irmão notou-o. E veio tranqüilo e sereno como era, conversar, saber o que
estava havendo. Pôr tudo em pratos limpos. Discutiram feio. Caim, com medo
que Abel o matasse, ou mesmo atentasse contra a própria vida. Abel, depois de
descarregado de tanto ódio que desandara a pôr nos reclamos do diálogo
pesado, finalmente entregou os pontos: informou que estava com câncer
terminal. Tinha pouco tempo de vida. Foi quando Caim riu adoidado. Então
tudo se revelou. Caim, cobra criada, pedira que o dr. Adamastor, seu amigão
também, desse um susto; passasse um trote naquele paciente metido a certinho,
que era seu irmão executivo. Então era tudo mentira? Abel não podia de
contentamento. Atirou a arma num cesto de lixo perto, catou uma zinha ruiva
que mostrava os fartos seios ao lado de uns engradados de maçãs argentinas,
pediu uma garrafa de legítima vodka russa e resolveu jogar no mesmo time do
irmão. Apesar dele ser mais novo alguns segundos, poderia muito bem lhe
ensinar os prazeres da vida, pelos quais, isto sim, valeria a pena viver
intensamente.
-0-

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03)-Quando adentrou ao recinto em total polvorosa, foi que viu em que ninho
de escorpiões o irmão a quem deveria cuidar, se metera. Tudo era uma zona
só, como uma particular ala de tolerância numa mansão de estilo neo-clássico.
Sentiu-se um bobo invasor ali, um corpo estranho. Ninguém reparou na sua
tristeza; parecia dentro de uma sala de castigo do purgatório. Castigo? Caçou
o irmão pródigo com olhar atento. O maldito, em cima de mesas de jogos de
azar, dizia poemas de Rilke. Abel estava fechado. Chegando perto do aparelho
de som que repetia a mesma balada de Elton John (ah! as estradas de tijolos
amarelos!), arrancou de vez o plug que levava longe a música. O silêncio foi
então ganhando tomo. Um por um todos foram se recompondo. Os homens nús
catando roupas semeadas, as mulheres recolhendo os fartos seios, os travestis
retocando batons e maquiagens pesadas, cada um se assuntando naquilo tudo
de inusitado. Abel, do mais fundo de si, gritou um pesadelo que não conseguia
mais segurar, feito um animal liberto tarde demais:
-Caim! Maldito irmão, onde está você?
Gritou uma vez só, como se todos os tímpanos presentes
guardassem para sempre o eco daquele momento crucial, daquela procura,
daquela cobrança estranha. Alguns o reconheceram irmão do anfitrião da festa.
Então Caim, finalmente saiu-se de sonado que estava em tremendo porre que
mal cabia em pé, guardou o triste texto em que fazia com pose de tragicomédia
e reconheceu seu guardião especial, o dono do lastro econômico da família; o
guardião de si como se um anjo doentio, como se uma espécie de babá.
Apresentou-se como um errante para a legião estrangeira. E foi calmo:
-EU ESTOU AQUI, MANO VELHO!
Era o irmão que pai e mãe tratavam como se um bibelô, um
aleijado, com excelentes carinhos e demorados entojos. Mas os velhos
estavam mortos. A sua meia porção tivera uma festa e tanto, como se Filho
Pródigo que voltara ao lar depois de um prejuízo enorme, mas ele tinha sido
um boçal janota e só. Ali estavam agora, frente a frente. Fez-se um silêncio de
cárcere na pausa da expectativa. Estavam a menos de cinco passos um do
outro. As duas faces da mesma moeda? Eram bem parecidos fisicamente. Só
que cada um tinha sua própria prótese, sua muleta, seu caminho. E caminhos

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não mentem. Não há sensações no esquecimento. Ali estavam os dois, cada um
com seu estilo peculiar de vida. -O quê está havendo, irmão Abel, perguntou
Caim que se recompunha e ainda assim era bem ele mesmo. Reparou, então, a
arma baixa, rente ao corpo, na mão inimiga do irmão posudo que ali parecia
um juiz. Abel sentia que para sair livre, mesmo para matar-se, tinha que
eliminar primeiro sua cruz em forma de gente. Tinha que varrer a imagem
daquele espelho que andava da face da terra. Num átimo de partícula de
segundo infinito, levantou a arma e segurou-se na mira silenciosa, sentindo-se
um réptil, um verme. Abel pensou tratar-se de mais uma brincadeira estúpida,
feito uma nova rasteira, um empurrão perto de penhasco assustador; uma faceta
sombria do irmão que não via mais como perigosa, estava costumado; era doce
assim até no pensar e avaliar perigosas idênticas situações. Súbito soou o tiro.
Um único som. Mas foram dois projéteis em diferentes direções e no mesmo
impacto de momento. Um acertou o pulmão de Caim, pródigo, gastador. Abel,
que acertara o alvo, sentiu-se atingindo também. O pobre vigia, Zé Zeferino,
tentara evitar o ataque, mas fizera mira errada, ferindo Abel na barriga, em
área vital do corpo. Tinha atingido fatalmente o dr. Abel, que de per-si
acertara Caim. A mão de Deus? Foram dois corpos caindo a gemer, num
coletivo suspiro só, como se ensaiado.
Abel arrastou-se até Caim, querendo tardia prestação de
contas. Tinha que conseguir isso.
Caim, estendeu e mão para o lado do mano mais velho,
implorando ajuda, socorro; não acreditando no que se passara. Ambos se
procuraram ali, na garagem cheirando a urina e sexo. No chão perto, botas,
máscaras, peças íntimas, masculinas e femininas, garrafas vazias.
Arrastaram-se, com dificuldades, um para o outro. As mãos
frias e trêmulas se tocaram. Tinham vindo da mesma barriga, e ali estavam na
mesma direção. Será o impossível?
Ninguém se moveu, nem um grão de sombra.
Debruços no chão, gemendo, os punhos finalmente paralelos
se tocaram, como num jogo de braço de ferro sem vencedor. Estavam outra vez
unidos, como se numa só placenta. Sempre estariam. Não havia motivo para
disputas agora, só fúteis contemplações de lado a lado, sem significados
maiores que o próprio quadro em si, já que o galope da morte já vinha com sua
ceifa cega.

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A cruz e a espada afinal, eram donas do mesmo espaço, no
mesmo diapasão de dor. Os dois lados trágicos no mesmo destino, desde a
concepção materna.
Quase se deram até, como se num ensaio fatal, o mesmo
abraço único, pacificado de derradeira trégua terminal. Quase que tiveram, no
mesmo instante, um mesmo suspiro derradeiro.
Quase.
No entanto, como nasceram, um seguiu em frente. E era Abel.
Iria morrer primeiro para, a pedido do pai (jurara fazer
isso!), cuidar - fossem para onde fossem - do caçula, pois essa era sua sina
mesmo nas pradarias da morte.
Iria abrindo caminhos. Tomaria conta. Até vencer seu tempo
e deixar de ser um anjo maldito, ganhando um outro feitio, outro trajeto, como
se numa outra dimensão terreal. Onde não mais seria condutor, mas,
certamente, pesado na balança (e achado em falta), e conduzido à sentença do
juizo final.
(FIM)

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O Gênesis depois do Dilúvio
“Eis que estou trazendo o dilúvio de águas sobre a
terra, para arruinar debaixo dos céus toda a carne em que
a força da vida está ativa. Tudo o que há na terra
expirará(...). Estabeleço contigo um pacto..."
(Gênesis 9/Bíblia)
-Deus, de ótimo astral um dia, angelicalmente permitiu-se em
contatos de infinitos graus (com todas os sensitivos instrumentos de
pensamentos, afetos e ações) nas visões em onirismos-letargias próprias de
Seu extraordinário deleite superior de comunicação, e foi quando Noé - depois
de sabedor do previsto fim em águas que limpariam as sujeiras de todas as
existência vis da terra - aprontou tudo; caçou casais de inúmeros bichos da
face do planeta, machos e fêmeas, e embarcou na enorme Arca-nau que
enfurnaram as velas aos quatro ventos, logo tomando da roda do remo enquanto
que os demais habitantes do mundo achavam ser insanidade dele; que ele
estava louco, mas, levando Noé, entre gaiolas fechadas e até algumas abertas,
comidas em compotas, ungüentos, ervas em caixões de terras com húmus,
peixes em vidros grandes e provisões gerais, mais um total de nove pessoas (a
família com oito membros e um desconhecido clandestino - talvez um anjo),
somando-se os três queridos filhos varões casados e as respectivas esposas,
além de sua mulher também muito mal impressionada com aquela nova loucura
de quase fase pré-senil dele, pois o marido vivia o tempo todo querendo salvar
a raça humana do mal, dos pecados, fazendo, às vezes, alguma bobagem,
todavia era verdadeiramente um cidadão bom e justo entre os muitos trastes
humanos, e depois, Noé era desse jeito mesmo, esquisito e visionário, e então,
quando Deus mandou um sinal - entre os chistes jocosos do seu povo em
redomas de pecados - Noé, determinadamente entrou no quase desconhecido
mar bravio de seu tempo, onde começou a inusitada navegação com uma
precária e primitiva bitácula, com os animais urrando aqui e ali feito loucos,
assustados, temerosos; os cavalos a relinchar, os bois mugindo, os burros a
zurrar, e no calor dessa maluca empreita marítima, muito cedo tudo começou a
feder com os excrementos expostos; a mulher de Noé não agüentando mais de

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enjôos e vômitos azedos em jatos, os filhos deles - quando não serviçais nos
joanetes ou gurupés - em coitos diuturnamente, às vezes entusiasmados pelos
animais que, entendiados e sonsos não escolhiam convés, estibordo ou
bombordo, pois quando davam no faro do cio, pegavam no breu do
acasalamento natural, acontecendo variados cruzamentos, com o cavalo
cobrindo a égua, a girafa macho trepando na girafa fêmea, o cagdo montando
seco na sua parceira, um corpulento rinoceronte feito unicórnio galgando a
fêmea posuda e seca, enfim, todos os animais, patos, coelhos, galinhas,
lagartixas, cobras, macacos brancos, borboletas, garças com asas de leque,
pequenos descendentes bisonhos de dinossauros bípedes, todos eles a
fornicarem nervosamente como bichos irracionais desesperados e também por
conseguinte os três jovens filhos de Noé, de nome Sem, Cã e Jafé que, fugindo
da terra do pecado, imitavam os intrépidos animais entre um sol ardido de
rachar mamona, feito alto sonrisal enorme no marasmo e tédio daquela viagem
que, por qualquer que fosse o motivo, não acreditavam como crível, achando
que o patriarca estava mesmo era gagá a orar nos sotaventos, só que, havia o
precavido medo de uma eventual praga supostamente divina - que o aloprado
velhote era bom numa intermediação disso, quando ficava uma fera ou em
devaneio de se comunicar com o Criador no curso de tão inusitada e louca
viagem - e assim achavam que um dia ele acabaria baixando a guarda, caindo
na real, cerrando as velas e, parando no afloramento de um porto seguro os
levariam para um lugar melhor no mundo, talvez o paraíso terrestre, uma
Cocunha qualquer, no entanto, sem terem o que fazer de ofício em alto mar, se
entregavam despudoradamente à gula, a luxúria e aos prazeres da carne o
tempo todo, no convés, na proa, nos porões cheios de pares de insetos como
gafanhotos-camaleões, casais de répteis azuis, tatús-mandorovás, bichos
mazurpiais e outras espécies, até que finalmente o Dilúvio programado por
Noé (ao saber de Deus) armou um estrondoso circo de betume e baixou em
pancadas de chuvas, relâmpagos, tempestades e maremotos em todos os cantos
da terra, com a nau vergastada baloiçando quase a submergir, por pouco não
fazendo água, e Noé, prudente, aproveitou para sugerir que recolhessem aquela
bendita benção potável (enviada dos céus), quando, no muito chover contínuo e
no demorando da viagem sem rumo certo, começaram a faltar algumas
necessárias provisões mal programadas na correria, além de comidas vitais,
escolhendo Noé propositalmente os machos (das fêmeas já prenhes) para
refeições circunstanciais, assando, cozinhando em guisados com cogumelos
que passaram a brotar nos porões fétidos da embarcação, se servindo com a

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patroa e os filhos, estes em pecado de instinto de sobrevivência tribal e
orquestrada sodomia ali, numa Arca que levava a semente de um só Deus para
um novo éden desconhecido mas de novo desejadamente limpo, segundo ele,
enquanto as tempestades espantosas caindo sem parar em maremotos horrendos
até (com a embarcação quase adernando) faziam Noé prudentemente ver que a
ração habitual do que seria o trajeto da viagem seria pouca; pois prosseguiu
matando outros machos (menos os corvos - que essas aves eram imprestáveis
aos olhos do Criador) até que só restou na grande arca-nau as fêmeas prenhes
dos animais todos e nenhum animal-varão, a não ser os seres humanos
guardados pelas improvisadas previsões que montaram de arranjar às pressas,
na bondade suprema de Deus, mas este, zangado com o comportamento dos
filhos do seu escolhido com muito denodo e zelo, fez com que as mulheres
promíscuas, noras de Noé, ficassem loucas e, mosqueadas, ganhassem catarros
e escamas, só que isso parece que, na intuição pestilenta do diabo - (também
sob a viagem ao desconhecido?) - quase à deriva de êxtase náutico tiveram
mais excitação e passaram a fornicar não apenas com os maridos excitados e
virís, mas com os cunhados que já cuspiam o catarro verde da contaminação,
depois sujadamente entre elas, quando o santo Noé, com escorbuto brando e
cãimbra (além da pele já amarela com pústulas e dentes se soltando) abatido e
cansado começou a duvidar da fé e do conhecimento que entendia por possuir,
ponderando que poderia ter literalmente entrado numa fria, embarcado numa
"canoa furada", pois que não havia mais carne para subsistência possível; os
potes de grãos e cereais eram rasos e ralos e os baús de mantimentos estavam
com provisões escassas, a água meio salobre já era pouca e suja de alcatrão
com pequenos cogumelos de infecção, mas em poucos dias o céu alto rasgou
sua cortina, abriu seu toldo alvo e clareou tudo de um azul-turqueza dantes
nunca visto, ocasião em que um novo horizonte limpo se apresentou sereno
num oceano verde e belo, com o fim do Dilúvio que durou cento e cinquenta
dias e noites sobre as fúrias das anormais águas que eram barrentas, conforme
as profecias, levando o improvisado mas vitorioso comandante a crer que
fizera o melhor para a espécie humana (sob a proteção de Jeová), e quando as
águas tumultuosas de limpeza da terra baixaram, Noé esperou as águas de todo
o mar do mundo drenarem direitinho até formarem marés e portos, então
avistou uma ilha segura para ancorar ao longe, uma espécie de cume de
montanha submersa e, mesmo não havendo condição de descer ainda, sair de
bordo para bebemorar a sobrevivência da espécie, observou então que de
casal só haviam os corvos, soltando, no entanto, primeiro a pomba prenhe que

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não achando lugar seguro ou plantado para fazer ninhos e colocar seus ovos de
continuação nas crias, voltou à bordo, quando Noé finalmente soltou o
preservado par de Corvos; essas aves do dianho, da rapina, que nunca mais
voltaram, pois no esgotão da lavada crosta terrestre havia muita carniça animal
e humana podre, desde a tampa da terra até depressões que já perdiam águas
pois baixavam de altura e volume, e nesse gesto-ícone estava semeando a nova
vida (já cismando Noé a respeito da Arca da Aliança que ergueria naquele
monte) pensando também na nova cara do futuro do mundão de Deus, apesar de
não entender de súbito a fracassada tentativa de melhorar a natureza indócil e
atrevida do homem que, para maldição e desgraça de todo plano cosmonal
resultara em frustração e vergonha aos olhos do Criador, sendo que nunca
houve, na verdade, a tal chamada lenda do Pacto do Arco-Íris...

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Finais Opcionais
Final Místico
Final Crítico
Final Sacrificial

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01)-Da mistura dos corvos-arautos do dianho (que traziam o núcleo do abismal
dos infernos) com as espúrias fêmeas grávidas que depois fundaram de
permitir o cruzamento entre primos próximos, a natureza pós-dilúvio criou o
novo Adão e a nova Eva do new-gênesis, até que um descendente deles matou
outro da família, preterido que foi de seu holocausto de talos e grãos oferecido
a Jeová pedindo perdão e querendo bençãos, só que Deus, muitos séculos
depois, numa manhã ardida de sol bravo que nem era domingo ou dia santo,
acordando de bom humor, depois de tomar um diet nescafé auroral com suco
de groselheira preta e ter comido bolinho de chuva, resolveu de sondar o teatro
shakespeereano da terra e, alhures, olhou sem querer, uma aldeia qualquer, se
agradando daquele belo lugar que era saudável, bom e bucólico, ficando com
divinal remorso de ter tido tanta vergonha da imagem e semelhança que criara,
tendo chamado um boêmio anjo de três asas de neon lilás, de nome Nathan, e
pediu que ele, depressinha, fosse até aquele lugar pelo qual finalmente se
encantara magistralmente, e desse o quinhão de ouro a cada ser humano
segundo sua profissão, trabalho, mistér, merecimento, e o anjo Nathan - que
estava na reserva de serviços emergenciais (os outros estavam ocupados em
esconder secretos capotes sujos de espermas vencidos de amantes no campo
de centeio de um tal político chamado Clinton) - foi até o lugar chamado
Passárgada que tinha sido sondado pelo Chefe-mor que estava de alto astral
(tinha visto a pomba do Espírito Santo verde?), e ali procurou uma enfermeira
e lhe deu um medidor de pressão de ouro, depois deu um serrote de ouro ao
marceneiro, em seguida um broquel de ouro ao escultor, uma panela de ouro à
cozinheira Irene Preta, e assim por diante andarilhou a cidade dando a
ferramenta de ouro a cada tipo, cada operário (chave de fenda de ouro), cada
campônio (arado de ouro), cada bacharel (espada de ouro - foi um anjo que
inventou a espada), cada professor (pena de ouro), cada alfaiate (tesoura e
agulha de ouro), sendo que ao final da missão auroral, ao longo do fim de uma
coxilha entristada viu um casebre ermo, num bosque solitário e florido de
papoulas quadradas, perguntando então ao seu "laptop-pentium de pulso" (com
conexão galaxia-sideral) quem morava ali, para dar sua parte em ouro, a
pedido imperioso de Deus, quando foi informado por via de um chips multi-
cerebral eterno que naquele recanto solitário e abandonado de presençais
sociais, morava uma espécie de ermitão urbano, um poeta que estava
escrevendo um romance chamado "O Rinoceronte de Clarice", com três finais,
um feliz (happy-end), um trágico (como aprendera na lavra mista de
Shakespeere e Nelson Rodrigues a Dalton Trevisan) e um final surrealista

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(para fugir; num mundo próprio além do que conhecia dos humanus na terra),
então o anjo Nathan, cumprindo a ortodoxa ordem imperativa de Deus (que
devia estar alegre com a vitória do Corinthians Campeão) foi até aquela casa
e, chamando pelo coração, pela alma, pela sagração do espírito ético-
comunitário do poeta de antigos haicais descalços feito "poesilhas" - agora
metido a fazer ficção-angústia virtual ou em três dimensões - e deu-lhe
prazeirosamente e para sempre uma CRUZ DE OURO.

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02)-Da mistura dos Corvos, da solidão abismal de Noé, da frustração eterna
de Deus e das alopradas fêmeas sodomizadas nasceu o novo gênesis depois do
dilúvio, até que um irmão puto da vida (e por discórdia de inveja) matou o
outro ao ter sido criticado por oferecer grãos e raízes num altar aos céus,
quando seu mano velho, mais malandro e interesseiro, oferecera em holocausto
um cordeiro filé mignon recém-nascido que agradara a Deus, e assim tudo
continuou na mesma sina; assim caminhou a humanidade, pintando o sete,
bordando guerras, tragédias, frustrando o Criador ao ver de novo sua imagem e
semelhança se degradando, parindo seres fúteis, com dúbias emoções pífias e
comportamentos ignóbeis, até que um dia um filho de Deus, já cansando de
brincar de Mãe com o Pai (e de chicote queimado no plano-dimensão do
paraíso celestial) pediu para o sagrado "Pai de Todas as Honras" -
("Qohélet/O-QUE-SABE") - uma chancezinha só de vir a esse vulgar degrau
do atrasado Sistema Solar pular carniça e também pregar sua mensagem, falar
do amor ao próximo, da caridade; acabar com os rituais de sangue que tanto
desagradavam a Deus, pois veneravam estátuas em pompas seculares, mas
Deus, posudo, ainda adiou por décadas o seu peremptório sim de
consentimento terreal, até que um dia o Espírito Santo membro da santíssima
trindade saiu de sua dimensão multidimensional, entrando atemporal na
virgindade de uma judia ruiva de cabelos encaracolados, mas essa história
todos já conhecem, desde a Estrela Guia (que os três reis magos no deserto
viram como uma nave-quasar) que trouxe a semente da luz-mostarda; do
Presépio ao Getsamanni, depois a crucificação, o ressurgir no terceiro dia de
luto e o ascender-se aos céus, com uns aprendendo a lição, outros ainda a
esperar alguma coisa mais que Jesus Cristo para realmente acreditarem,
enquanto isso, quase todos os pseudo-humanos mercantilistas roubam,
exploram, (ah as impunes riquezas injustas do lucro capitalista!) fornicam,
preparam guerras e ogivas, idolatrias, rituais macabros, igrejas-circos,
catedrais-bancos e, perniciosos que são, no mundo do lucro insano, exploram a
mais valia dos trabalhos neo-escravistas e até mesmo vendem a mãe; vendem
mas não entregam.

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03)-Da mistura dos corvos, da gravidez náutica das despudoradas noras de
Noé, da vergonha de Deus com o que de errado criara, da própria frustração
de Noé que após o Dilúvio até tentou o suicídio se dependurando numa
oliveira-brava, nasceu o presépio do novo homem, nesse Gênesis-Dois, o
retorno, enquanto uns acreditam em lendas, uns não deixam os mortos
enterrarem seus mortos, outros inventam o inexistente, mas quando um irmão
traído matou outro irmão, foi que se viu que um anjo mal - que caíra em
desgraça nos céus do Criador - também embarcara com Noé (no espírito de
porco de um animal qualquer) que aproveitou sua maldade dantesca e também
injetou na gene, no DNA da nova espécie humana, a morte eterna - o ser
humano é o único animal que sabe desde quando nasce que vai morrer - mais
o infinito medo das redomas eternais da vida, plantando no Ser Humano a
solidão-albatroz, a desgraça, o abismal salário do pecado, mas isso é uma
outra história - (como a do clandestino anjo que embarcou com Noé e vive até
hoje no Morro da Aliança) - cujo fim, talvez fatal em hecatombe a vir do
espaço sideral, felizmente não caberá a mim contá-lo aqui, sendo eu apenas um
pobre e miserável pecador (e inédito escritor maldito) ainda que também filho
de incontáveis pecadores e finitos filhos de Deus...
(FIM)

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AGRADECIMENTOS DO AUTOR:
Rosangela Silva
Ligia Oliveira de Azevedo
Maria Cecília de Campos Vieira
Marisa Sampaio Hartmann
Sebastiana Machado Freitas
Maria Aparecida Carolino David
Maria Tereza dos Santos
Marina Borges de Oliveira Marinho
Carolina M. Marques
Elcio Barros Raulino
Pela força que deram, pela torcida, apoio e o carinho da amizade.
Silas Corrêa Leite