Inúmeras vezes, no Brasil, as livrarias têm sido, para os intelectuais, agradáveis centros de reunião. Pelo menos foi assim no Rio de Janeiro de outrora. Quem penetrasse na Garnier, das quatro às seis da tarde, veria Sílvio Romero, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correira, sem falar em dezenas de outros. A Livraria Briguiet, situada na Rua do Ouvidor, era preferida por Pandiá Calógeras, Graça Aranha, José Veríssimo, Rui Barbosa, Medeiros e Albuquerque. E na Laemmert, que se localizava também na mesma rua, podiam ser encontrados Euclides da Cunha, João Ribeiro, Múcio Teixeira, Gonzaga Duque, Afonso Celso, Inglês de Sousa… Bons tempos, aqueles! Havia fraternidade. Os escritores se mostravam mais puros, menos preocupados com as famigeradas panelinhas e a hipotética glória literária.
Hoje, nas livrarias, não há mais tertúlias de escritores, mas sim de ladrões de livros. Já vi fulanos cometendo esses roubos. Agem às vezes em grupos, como se fossem professores realizando uma pesquisa bibliográfica. Roubam as obras não para ler, tornarem-se cultos, e sim para as vender nos sebos ou de outra maneira.
A classe desses ladrões é curiosa, eclética, e apresenta figuras bem pitorescas, dignas de serem estudadas pelos psicanalistas.
Afirmam alguns cronistas que Sir Edward Fitzgerald se viu condenado a dois anos de prisão, devido ao fato de ter surrupiado, em Paris, uma Bíblia rara…
Larápios de livros… Que se pode deduzir, quando tais tipos proliferam? Amor excessivo à cultura? Paixão invencível, descontrolada, que leva à insânia, a atos reprováveis? Em algumas ocasiões, acredito, é cleptomania. Em outras, trata-se de sem-vergonhice, de assalto.
Anatole France escreveu um romance intitulado O crime de Silvestre Bonnard, onde narra, com fino humor, a história de um velhote erudito, que rapta uma jovem para dá-la em casamento a um rapaz. Como dote, o encanecido tutor oferece aquilo que mais ama na existência: os seus preciosos livros. Mas à noite, no silêncio da casa adormecida, Silvestre levantava-se, saía furtivamente do quarto e ia retirar, da biblioteca, os volumes prediletos.
O rapto da protegida não se afigurava um crime, perante a consciência do bibliomano. Pouco versado em leis, desconhecia a gravidade do delito. Todavia, o roubo de vários livros, embora fossem seus, causou-lhe remorsos. É que Silvestre furtava o dote da moça. Quebrando a palavra empenhada, estabelecia uma brecha no sua dignidade. E isto, aos olhos de um cidadão honrado, torna-se uma falta imperdoável.
Merece indulgência um sujeito que age desta maneira? Sim. O motivo é tão humano que temos de ser complacentes.
Os plagiários são mais nocivos que os larápios de livros. É que estes roubam materialmente, enquanto os primeiros furtam raciocínios e imagens, ou melhor, as criações felizes da nossa inteligência, os frutos da árvore frondosa da nossa imaginação.
Quem me tira um livro da estante se apodera de um objeto amado, mas eu sei, no íntimo, que posso adquirir outro exemplar, em tudo idêntico ao que foi subtraído, caso a obra não esteja esgotada. Aquele, no entanto, que me despoja de uma bela frase e de um nobre pensamento, está me esbulhando de um tesouro. Nesta circunstância, asseguro, sinto-me lesado, expropriado.
É mais difícil caracterizar um plágio do que um roubo comum, pois há larápios super habilidosos, exímios na arte de furtar ideias, de vesti-las com roupagens elegantes.
Aqui entre nós, leitor, quero confessar uma coisa. Para mim todo plagiário é um assaltante manhoso e sub-reptício, que rouba o produto do nosso cérebro empregando a mesma desenvoltura e o mesmo cinismo de um esperto ladrão de livros.
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